MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 31
Tenho também na memória a ale-
gria de nossos companheiros alemães
quando lhes foi apresentada a ideia de
lançarem, para as eleições europeias,
candidatos gregos na Alemanha e can-
didatos alemães na Grécia. Trata-se de
mostrar que nosso movimento é trans-
nacional, que ele entende se apropriar,
aqui e agora, das instituições da ordem
neoliberal. Não para destruí-las, mas
para colocá-las a serviço de um núme-
ro maior de pessoas em Bruxelas, Ber-
lim, Atenas e Paris. Em toda parte.
Agora, imagine o que, ao contrário,
teriam sentido se eu lhes tivesse feito o
seguinte discurso: “A União não é re-
formável e deve ser dissolvida. Nós, os
gregos, devemos nos voltar para nosso
Estado-nação e tentar construir o so-
cialismo lá. Vocês deverão fazer o mes-
mo aqui na Alemanha. Em seguida,
uma vez que tivermos ganho, nossas
delegações se encontrarão para discu-
tir a colaboração entre nossos novos
Estados progressistas soberanos”. Sem
dúvida alguma, nossos companheiros
alemães teriam perdido seu entusias-
mo e voltado para casa desanimados
com a perspectiva de enfrentar o esta-
blishment alemão enquanto alemães e
não como membros de um movimen-
to transnacional.
Se minha análise estiver correta,
pouco importa saber se a União é refor-
mável ou não. O que conta é levar adian-
te proposições concretas sobre o que fa-
remos com as instituições europeias.
Não proposições extravagantes ou utó-
picas, mas descrições completas de
quais seriam nossas ações esta semana,
no próximo mês e no ano que vem, con-
siderando as regras atuais e os instru-
mentos existentes. Por exemplo, como
redefiniremos o papel do mal denomi-
nado Mecanismo Europeu de Estabili-
dade (MEE), como reorientaremos a
política chamada de “flexibilização
quantitativa” ( quantitative easing ) do
Banco Central Europeu, como finan-
ciaremos imediatamente e sem novos
impostos a transição ecológica ou uma
campanha de luta contra a pobreza.
Por que propor um programa tão
detalhado? Para mostrar para os eleito-
res que existem soluções, mesmo no
interior de regras estabelecidas para
servir aos interesses do 1% mais favo-
recido. Evidentemente, ninguém – e
sobretudo nós – espera que as institui-
ções da União se juntem às nossas pro-
posições. O que queremos é que os elei-
tores vejam o que poderá ser feito em
lugar do que é feito, de modo que eles
desmascarem o establishment sem se
voltarem para a direita xenófoba. É a
única maneira, para a esquerda, de su-
perar seus limites atuais e construir
uma grande coalizão progressista.
O “New Deal for Europe” tem exa-
tamente esse objetivo: em primeiro lu-
gar, mostrar que a vida da maioria dos
cidadãos pode ser melhorada a curtís-
simo prazo, mesmo com as regras e as
instituições existentes. Em segundo,
delinear a transformação dessas insti-
tuições e, ao mesmo tempo, planejar o
processo para a convocação de uma
Assembleia Constituinte que, a longo
prazo, levaria a uma Constituição Eu-
ropeia democrática pela qual todos os
tratados existentes serão substituídos.
Em terceiro, demonstrar como os me-
canismos que introduziremos desde o
primeiro dia poderão nos ajudar a jun-
tar os cacos se, apesar de todos os nos-
sos esforços, a União se desintegrar.
Muitos são os que falam da impor-
tância da transição ecológica. Mas eles
não dizem de onde virá o dinheiro
nem quem a planejará. Nossa resposta
é clara: entre 2019 e 2023, a Europa
precisa investir 2 trilhões de euros nas
tecnologias verdes, na energia solar,
eólica etc. Propomos que o BEI emita
durante quatro anos um volume de
bônus suplementares da ordem de 500
bilhões de euros. Ao mesmo tempo, o
BCE anuncia que, se o valor desses
bônus cair, ele os comprará no merca-
do secundário de títulos. Consideran-
do esse anúncio e a superabundância
de poupanças em todo o mundo, o
BCE não terá de desembolsar um úni-
co euro, uma vez que todos os títulos
serão imediatamente vendidos. Com
base no modelo da Organização Euro-
peia de Cooperação Econômica (OE-
CE) – precursora da Organização para
a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE) –, criada em 1948
para distribuir os créditos do Plano
Marshall, uma nova Agência Europeia
de Transição Ecológica canalizará es-
ses fundos para projetos “verdes” em
todo o continente.
Cabe observar que essa proposta
não necessita de nenhum imposto no-
vo, pois se baseia em um título euro-
peu existente (por exemplo, os bônus
do BEI) e é plenamente legal de acordo
com as regras em vigor. O mesmo
ocorre com outras propostas de nosso
“New Deal” sobre as medidas a serem
tomadas imediatamente. Por exemplo,
nosso fundo antipobreza. Propomos
que bilhões de lucros do Sistema Euro-
peu de Bancos Centrais (SEBC), prin-
cipalmente os lucros dos ativos no
contexto de flexibilização quantitati-
va, sejam utilizados de modo a garan-
tir alimentação, habitação e energia
para todos os cidadãos.
Outro exemplo é nosso plano de
reestruturação da dívida pública da
zona do euro. O BCE servirá como me-
diador entre os mercados financeiros e
os Estados para reduzir o fardo de sua
dívida total sem precisar emitir moeda
e sem que a Alemanha tenha de pagar
ou garantir a dívida pública dos países
mais endividados.
Como mostram esses exemplos,
nosso “New Deal” faz uma combina-
ção entre medidas que necessitam de
uma alta competência técnica, aplicá-
veis considerando as regras existentes
da União, e uma ruptura radical com a
austeridade e com a lógica de “salva-
mento” imposta pela Troika. Além dis-
so, prevê instituições que preparem o
terreno para um futuro europeu pós-
-capitalista. É o caso de uma proposta
de socialização parcial do capital e dos
lucros provenientes da automatiza-
ção: o direito de grandes empresas
operarem na União será subordinado
à transferência de uma porcentagem
de suas ações para um novo Fundo Eu-
ropeu de Ações. Os dividendos dessas
ações financiarão, em seguida, uma
renda básica universal a ser paga para
todos os europeus, independentemen-
te de outros benefícios sociais, seguro-
-desemprego etc.
UNIÃO DA ESQUERDA É CRUCIAL
Outro exemplo da radicalidade de
nossas propostas: a reforma do euro.
Antes de mergulharmos nas mudan-
ças a serem feitas nos estatutos do
BCE, temos um projeto de criar uma
plataforma digital pública de paga-
mentos em todos os países da zona do
euro. Os contribuintes terão possibili-
dade, então, de comprar créditos fis-
cais digitais utilizáveis para efetuar
transações entre eles ou para pagar fu-
turos impostos com um desconto
substancial. Esses créditos serão feitos
em euros, mas somente poderão ser
transferidos entre contribuintes de
um mesmo país, o que impedirá bru-
tais fugas de capitais.
Ao mesmo tempo, os governos po-
deriam criar uma quantidade limitada
desses euros fiscais e destiná-la aos ci-
dadãos que passam por dificuldades
básicas ou para financiar projetos pú-
blicos. Os euros fiscais permitiriam
aos governos sob pressão estimular a
demanda, diminuir sua dívida e, en-
fim, reduzir a força esmagadora do
BCE e evitar o custo de uma saída ou
de uma desintegração do euro. A longo
prazo, essas plataformas digitais pú-
blicas de pagamento poderão consti-
tuir um sistema regulado de euros es-
pecífico a cada país, que funcionará
como uma câmara de compensação
internacional. Seria uma versão mo-
dernizada da visão de John Maynard
Keynes do que veio a ser o sistema de
Bretton Woods, mas que infelizmente
ele não estava mais vivo para ver.
Para resumir, nosso “New Deal for
Europe” é um projeto global para: a)
redesenvolver, com perspicácia, de
acordo com os interesses da maioria,
as instituições existentes; b) fazer o
planejamento de um futuro pós-capi-
talista, radical e verde; c) nos preparar-
mos para recuperar a saúde da União
Europeia se ela sofrer um colapso.
A esquerda tem dois inimigos: a de-
sunião e a incoerência. A união é cru-
cial, mas não deve ser feita à custa da
coerência. Tomemos, como exemplo, o
estado do Partido da Esquerda Euro-
peia atualmente. Como seus membros
podem batalhar pelos votos dos eleito-
res no próximo mês de maio se, na
Grécia, é representado por um partido
que, quando no governo, implemen-
tou o mais brutal programa de austeri-
dade da história do capitalismo e, em
países como a França e a Alemanha,
um grande número de seus dirigentes
é eurocético?
Amigos de esquerda bem intencio-
nados nos perguntam por que o DiEM25
não faz uma aliança com o movimento
França Insubmissa, encabeçado por
Jean-Luc Mélenchon e, na Alemanha,
com o movimento Aufstehen, liderado
por Sahra Wagenknecht e Oskar Lafon-
taine. A razão é simples: porque nosso
dever é construir a unidade que tenha
como base um humanismo radical, ra-
cional e internacionalista. Isso signifi-
ca um programa radical comum para
todos os europeus e uma política em
favor de uma Europa aberta que consi-
dera as fronteiras como cicatrizes no
planeta e dá boas-vindas aos imigran-
tes. Essa é a plataforma mínima.
Nosso apelo à unidade se baseia em
uma ideia simples: o DiEM25 convidou
todos os progressistas para serem
coautores de nosso “New Deal for Eu-
rope”. Nosso apelo foi ouvido. Généra-
tion-s (França), Razem (Polônia), Al-
ternativet (Dinamarca), Democrazia e
Autonomia (Itália), MeR A25 (Grécia),
Demokratie in Europa (Alemanha),
Wandel (Áustria), Actúa (Espanha), Li-
vre (Portugal) se juntaram a nós. Ou-
tros estão prestes a fazê-lo. Juntos,
constituímos a coalizão “Primavera
Europeia”, que lançará candidatos pa-
ra as eleições no próximo mês de maio.
Nossa mensagem para o establish-
ment europeu autoritário é a seguinte:
resistiremos a vocês por meio de um
programa radical, que é bem mais so-
fisticado tecnicamente que o de vocês.
Nossa mensagem para os xenófo-
bos fascistas: combateremos vocês em
todos os lugares.
Nossa mensagem para nossos com-
panheiros da esquerda europeia, do
movimento França Insubmissa etc.:
podem contar com nossa infindável
solidariedade, na esperança de que,
um dia, nossos caminhos vão se con-
vergir a serviço de um humanismo ra-
dical e transnacional.
*Yanis Varoufakis é economista, ministro
das Finanças da Grécia entre janeiro e julho
de 2015 e fundador do Movimento pela De-
mocracia na Europa 2025 (DiEM25).
1 O ano de 2025 corresponde ao prazo final fixado
pelo movimento “Para fazer que a Europa se torne
plenamente democrática e funcional”. [Nota da re-
dação.]
2 FMI, Banco Central Europeu e Comissão Euro-
peia. [Nota da redação.]