34 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019
A CRISE POLÍTICA QUE DIVIDE A ÁFRICA
Organizadas com dois anos de atraso, as eleições na República Democrática do Congo resultaram em um arranjo político
sem relação com a realidade das urnas. Esse epílogo suscitou divisões inéditas na África. Eclipsando as habituais reações
da “comunidade internacional”, tais fraturas lançam luz sobre as transformações políticas do continente
POR FRANÇOIS MISSER*
No Congo, o candidato
derrotado... é eleito
E
xcepcionalmente, a manipula-
ção das eleições gerais de 30 de
dezembro de 2018 na República
Democrática do Congo (RDC)
abriu uma fratura na África: de um la-
do, aqueles que queriam fazer prevale-
cer a verdade das urnas; do outro,
aqueles que, com a África do Sul à fren-
te, privilegiaram a decisão “soberana”
do país. Inédita, essa divisão revela as
novas relações de força no continente
e os debates que o atravessam.
O anúncio dos resultados provisó-
rios pela Comissão Eleitoral Nacional
Independente (Ceni) em 10 de janeiro
suscitou imediatamente a polêmica.
Depois de ter pedido uma nova con-
tagem dos votos, a União Africana te-
ve de se inclinar diante do veredito
do Conselho Constitucional de 20 de
janeiro de 2019. Contra a evidência,
Félix Tshisekedi, candidato da coali-
zão Rumo à Mudança (CACH – Cap
pour le Changement), foi proclamado
vencedor com 38,57% dos votos, à
frente do candidato da outra coalizão
de oposição, Lamuka [“Acordem”],
Martin Fayulu (34,8%) e do sucessor
do presidente Joseph Kabila, Emma-
nuel Ramazani Shadary (23,84%), ao
final dessa eleição uninominal com
um único turno.
Diante desse resultado, não pode-
ria haver dúvida. Entretanto, relatório
publicado em 18 de janeiro pela bem
informada e respeitada Conferência
Episcopal Nacional dos Bispos Congo-
leses (Cenco)^1 revelou, na base de uma
amostra representativa de 13,1 mi-
lhões de eleitores, um pódio bem dife-
rente (Fayulu, 62,11%; depois Tshise-
kedi, 16,93%; e, por fim, Ramazani
Shadary, 16,88%). O método utilizado
para essa contagem provou-se correto
em Gana (em 2011 e em 2016), na Nigé-
ria (em 2011 e em 2015), na Tunísia (em
2014), assim como em Burkina Faso e
na Costa do Marfim em 2015.
UM ARRANJO IMPROVÁVEL
O resultado oficial foi na verdade
negociado no último momento entre
Kabila e Tshisekedi. Confrontado ao
fracasso de seu sucessor, Kabila prefe-
riu entrar em acordo com aquele que se
encontrava no segundo lugar, confian-
do a ele sua cadeira, enquanto eleições
legislativas, organizadas ao mesmo
tempo e validadas pela Ceni, acorda-
vam aos partidários do presidente uma
confortável maioria de mais de trezen-
tos deputados em quinhentos.
Menos brilhante e carismático que
seu pai, Étienne Tshisekedi, figura da
vida política congolesa morto em 2017,
Félix Tshisekedi parecia mais maleável
que seu concorrente que se encontrava
em primeiro lugar. Sem recursos fi-
nanceiros nem diplomas, ele tinha ten-
tado diversas vezes uma aproximação
com o campo de Kabila. Fayulu, por
sua vez, antigo executivo da Ex xonMo-
bil, com uma carreira política sem
comprometimentos – nem com o regi-
me de Joseph Mobutu (que reinou no
país de 1965 a 1997) nem com a dinas-
tia dos Kabila –, parecia incontrolável.
O apoio que lhe davam duas personali-
dades muito populares – Moïse Ka-
tumbi, ex-governador de Katanga, e
Jean-Pierre Bemba, ex-vice-presidente
- aumentava ainda mais sua capacida-
de de perturbação. A escolha do poder
se impôs rapidamente.
Fato novo: em um continente onde
as autoridades frequentemente co-
brem com um véu de pudor as mani-
pulações eleitorais,^2 uma circunspec-
ção inabitual acolheu esse arranjo
improvável. Um debate a distância a
respeito da atitude a ser adotada co-
meçou a existir entre as autoridades
congolesas, as organizações continen-
tais e potências regionais como a Áfri-
ca do Sul. Nesse diálogo interafricano,
as críticas sobre os números oficiais
emitidas pelo ministro francês das Re-
lações Exteriores, Jean-Yves Le Drian,
foram rapidamente colocadas em se-
gundo plano.
Depois da publicação dos resulta-
dos provisórios, em 10 de janeiro, Ed-
gar Lungu – presidente da Comunida-
de de Desenvolvimento da África
Austral (CDA A), da qual faz parte a
RDC, e chefe de Estado zambiano –
emitiu publicamente “sérias dúvidas”
e estimou “que uma recontagem per-
mitiria que se tranquilizassem tanto os
vencedores quanto os perdedores”. Ao
mesmo tempo, Denis Sassou Nguesso
- presidente da Conferência Interna-
cional sobre a Região dos Grandes La-
gos (CIRGL), da qual a RDC também é
membro, e dirigente do Congo-Brazza-
ville – aconselhou em Kinshasa a “con-
siderar uma recontagem dos votos a
fim de garantir a transparência dos re-
sultados”. Por sua vez, a União Africa-
na manifestou suas reservas e anun-
ciou sua intenção de enviar para
Kinshasa, em 21 de janeiro, uma dele-
gação conduzida por seu presidente, o
chefe de Estado ruandês Paul Kagamé.
Única voz discordante, e não me-
nos importante, nesse concerto de
reações céticas: a do presidente sul-
-africano, Cyril Ramaphosa, que ime-
diatamente felicitou os partidos con-
goleses por terem garantido um
processo eleitoral pacífico “sem inge-
rência nem pressões”. Em 14 de janeiro,
o ministro sul-africano das Relações
Exteriores e da Cooperação, Lindiwe
Sisulu, apelava para que a “comunida-
de internacional” “respeitasse os pro-
cessos internos legais”. Em 20 de janei-
ro, véspera da visita anunciada de uma
delegação da União Africana, a Corte
Constitucional Congolesa apitava o
fim do jogo, proclamando a vitória de-
finitiva de Tshisekedi. Logo após a Áfri-
ca do Sul, todos os países africanos en-
tão reconheceram o novo chefe de
Estado congolês.
Chocante do ponto de vista dos va-
lores democráticos, essa vitória do fa-
to consumado se explica pela história
movimentada e dolorosa da RDC. O
país não conheceu uma alternância
democrática desde sua independên-
cia, em 1960, um ano antes do assassi-
nato do primeiro-ministro Patrice Lu-
mumba pelos serviços secretos belgas.
Segundo a Constituição, Kabila – no
poder desde 2001 – deveria ter deixado
o poder em dezembro de 2016, mas a
eleição presidencial foi adiada por
dois anos, oficialmente em razão de
“problemas materiais”.^3 Em tal con-
texto, a manutenção, mesmo que con-
testável, do resultado pode aparecer
como um alívio... enquanto se espera
por dias melhores.
Diante do imperativo democrático,
foi a preocupação em manter a estabi-
lidade da RDC que ganhou no final.
Por seu tamanho e sua situação no co-
ração do continente, esse país tem, de
fato, para toda a África, uma impor-
tância capital, ainda maior pela im-
portância de seus recursos. Maior fon- © Monusco / Sylvain Liechti
Eleições presidenciais na República Democrática do Congo