MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 37
© Guilherme Henrique
mento de extrema violência do gover-
no, e eu fui muito agressivo. Entrava
no palco agredindo antes de dar
oportunidade para alguém me agre-
dir. Via fotos daquele período e não
entendia como poderia ser eu, por-
que não me reconhecia na época do
Secos & Molhados. Não sabia que
aquilo estava dentro de mim, porque
aí o assunto é o inconsciente. Era algo
que vinha e eu deixava acontecer,
protegido por uma máscara que for-
talecia o resto.
Como o uso de drogas aparece nessa
história?
As drogas aconteceram antes do
Secos & Molhados. No dia que come-
çou minha carreira no grupo decidi
que não deveria usar nada no palco.
Fumei maconha uma única vez para
fazer um show, na primeira vez que fo-
mos a Belo Horizonte. Lembro de estar
em um campo de futebol e alguém da
plateia falou “bota pra quebrar, Ney,
porque nós não podemos”. É a única
memória do show. Eu não gosto de não
ter memória.
Você acha que seria um artista dife-
rente sem utilizar drogas?
Não sei, porque, como nunca subi
no palco sob efeito de nada, minhas
experiências foram anteriores ao Se-
cos. Estou falando de LSD puro, que
abre as portas da percepção. Não é
usar droga para dançar em boate. Eu ia
para praias desertas no final da déca-
da de 1960, com roupa branca, uma es-
pécie de ritual. Droga era um veículo
para alcançar outro estágio. Tomei o
santo-daime por um ano e meio nos
anos 1980 e parei porque estava fican-
do meio acelerado.
No livro, você diz que se considera uma
pessoa estranha para a média da
população.
Porque penso esse tipo de coisa
que estou te falando [risos]. As pessoas
nem atinam para essas possibilidades.
Acredito no que não vejo, sou muito
intuitivo e acredito na minha intuição.
Acredito em vida em outros planetas.
É ridículo acharem que somos o ápice
de todos os universos e da criação. Es-
tamos longe disso e de qualquer ápice.
Se o ápice destrói seu hábitat, rouba,
assassina, que ápice é esse?
Por que não refletimos sobre isso?
Porque não somos ensinados, não
falam disso na escola. Porque nossos
pais não incentivam e porque eles
também não sabiam. Não deram o
pulo do gato pra eles. Esse pensa-
mento te leva a independer de qual-
quer igreja ou religião. Seu relaciona-
mento com Deus é direto. Ele não é
um senhor que fica lá no céu apon-
tando o dedo para mim dizendo que
eu errei. Deus, para mim, é um prin-
cípio amoroso.
Qual foi seu pulo do gato?
Entender que quem comanda é o
coração, não a cabeça. Compreendi is-
so ao tomar o daime. Tudo ia para mi-
nha cabeça, e eu ficava esquematizan-
do tudo, julgando, “que gente esquisita,
esses crentes”. Em determinado mo-
mento, pensei: “Idiota, para de olhar
para fora e olha para dentro de você”.
Árduo trabalho, tá? Até que um dia en-
tendi que não estava na cabeça e co-
mecei a exercitar isso. Este é o pulo do
gato que ninguém dá: você tem que se
guiar pelo seu coração. Eu não era
amoroso com as pessoas, não sabia re-
ceber carinho.
Na minha casa, ninguém nunca se
beijou. Saí de casa aos 17 anos e fui vi-
ver minha vida independente, fosse
tendo o que comer ou não. Optei por
ser livre e nunca me fiz de coitado. Is-
so me endurecia, porque estava sozi-
nho contra o mundo. Depois, com o
daime, fui entendendo que poderia
ser mais manso, mesmo discordando
de tudo. É uma questão de amor pró-
prio, outra coisa que as pessoas não
entendem. Gostar de si, se respeitar.
Devo ter limites, ainda que sejam
mais elásticos [risos].
Como o público responde a seu com-
portamento no palco, antes e agora?
No começo peguei umas barras
bem pesadas, de agressão. Mas, a par-
tir do momento em que eu fui mudan-
do, isso foi se alterando também. Hoje
em dia não quero agredir ninguém,
quero acariciar. Antigamente queria
trepar com todos eles. Minha sorte foi
nunca ter reprimido nada, mesmo que
fosse agressividade.
Você está cantando “ A Cara do Brasil ”
no seu show, que diz: “A gente é torto
igual Garrincha e Aleijadinho / Nin-
guém precisa consertar / Se não der
certo a gente se virar sozinho / decerto
então nunca vai dar”. Essa é nossa si-
na? Há quem acredite que precisamos
criar algo enquanto país.
Sim, concordo com ele. Mas, para
isso, precisamos voltar lá atrás, respei-
tar os índios, os negros, a natureza.
Porque há, por exemplo, uma dívida
histórica com os negros que ainda não
foi resolvida. A gente precisa entender
qual é nosso jeito, mas não sei se vive-
rei pra ver. Enquanto o Brasil que eu
idealizo não acontece, vou vivendo
minha vida, me distanciando desses
focos de podres poderes.
Como você avalia a presença da mi-
nistra Damares Alves, com um dis-
curso evangélico, no ministério que
contempla direitos humanos e temas
relacionais a religião e sexualidade?
Bom, primeiro de tudo, o Estado é
laico. Nenhuma religião deve coman-
dar nada. Isso já é errado.
E o Bolsonaro?
Moderou um pouco o discurso.
Espero que ele entenda que existe
muita coisa para se preocupar no
país. E não adianta achar que os gays
vão acabar, porque as pessoas nas-
cem e continuarão nascendo. Se ele
não está informado, que saiba: nin-
guém vira nada, as pessoas nascem
desse jeito. Deixa cada um viver sua
vida e vai governar. Não se meta na
vida de ninguém.
Há uma entrevista sua recente à Folha
de S.Paulo em que você questiona esse
papel de ser o representante do movi-
mento gay. Por que você acha que as
pessoas o colocam nesse lugar?
Porque talvez eu tenha sido o pri-
meiro que teve coragem de se expor.
Não vejo por outro ângulo. Eles estão
me ouvindo falar há 45 anos sobre tu-
do, e será que ainda não entenderam
minha mensagem? Ou não querem
entender? É conveniente. Eu apoio to-
dos os movimentos. Eu sou muito mais
que isso, não me satisfaço só com isso
e penso muito além disso.
*Guilherme Henrique é jornalista.
“Enquanto o Brasil
que eu idealizo não
acontece, vou
vivendo minha vida,
me distanciando
desses focos de
podres poderes”