Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 21


Carne, espírito,
memória e afeto
criam uma
copresença entre
mortos e vivos que
tem forte alcance
político

“perda da perda”.^5 A impossibilidade
de realizar plenamente o trabalho do
luto soma-se à ruptura brutal com o
futuro imaginado, acalentado, confi-
gurando um trauma que, ainda se-
gundo Cho, não se localiza apenas no
passado, mas se movimenta também
em direção ao futuro, sendo transmi-
tido transgeracionalmente e espraian-
do-se, portanto, para circuitos maio-
res. Não poucas vezes ouvi, seja em
falas públicas, seja em falas mais ínti-
mas, essas mulheres contarem não só
dos filhos mortos, mas também dos
netos que não chegariam a ter. Esse fu-
turo perdido segue com elas, corre
misturado ao presente, inscreve-se no
cotidiano como uma espécie de devir
ao avesso. São aniversários que se acu-
mulam e idades que se cumprem sem
serem cumpridas de fato. Mas são
também outras datas que se amon-
toam: das audiências realizadas e não
realizadas, dos julgamentos que raras
vezes chegam, das mortes de outros
meninos que trazem de volta ao corpo
as mesmas sensações de quando eles,
os seus, se foram.
Essas presenças fantasmáticas não
devem ser pensadas apenas no âmbi-
to das relações familiares ou dos afe-
tos diretos. Elas se inscrevem como
tecnologias de governo em territórios
inteiros, passam por gerações, reen-
carnam nas novas mortes, nas chaci-
nas, nas imagens replicadas que não
dão conta dos números chocantes que
configuram as estatísticas oficiais. Fa-
zem-se presentes sob a forma de me-
dos, cuidados, vergonhas e raivas que
conduzem os vivos em suas andanças
pelo mundo. O silêncio em torno des-
ses mortos é, em verdade, ensurdece-
dor. Como no caso de tantas outras fi-
guras contemporâneas, sejam os
prisioneiros sujeitos à detenção inde-
finida em Guantánamo ou os refugia-
dos que não podem retornar nem se-
guir em frente, esses vivos-matáveis
existem em condição de irrealização
contínua. Estão presentes e não estão.
São evocados de maneira espectral
quando se fala na necessidade de eli-
miná-los, formando um corpo coleti-
vo e sem rosto definido que se mate-
rializa de súbito naqueles que foram
(ou devem ser) alvo de snipers e dro-
nes, em uma fantasia de tons simulta-
neamente futuristas e nostálgicos. Ou
que, em uma evocação animalizante
e desumanizadora, devem ser “abati-
dos”, ou, ainda, que caem sufocados
por seguranças terceirizados na porta
de um supermercado. Bandido bom é
bandido morto, reza o bordão, mas sa-
bemos que a necropolítica também
pode se tornar necrodestino na medi-
da em que é sua morte que os produz
inequivocamente como bandidos.
A natureza do silêncio que os cerca
não está na falta de informações ou
notícias, mas em outro tipo de interdi-


ção, a que envolve a impossibilidade
de reconhecer que exista de fato perda
nessas vidas ceifadas. Essa natureza
ambígua de perda não perdida é o que
garante sua presença espectral, como
algo que, mesmo que não descrito ple-
namente, está sempre presente e pres-
tes a irromper quando uma cena pare-
ce puxar outra mais subterrânea. O
corpo sufocado no chão. O corpo ata-
do ao poste e espancado. A mulher chi-
coteada pelo policial. Imagens que
guardam outras imagens em si, en-
capsulando e insinuando um longo
rastro de relações historicamente
construídas de dominação. Uma vez
mais, sugiro que pensemos na força
produtiva e ao mesmo tempo críptica
de termos como “traficante”, “envolvi-

do”, “terrorista” ou mesmo “suspeito”


  • termos que parecem descrever algo
    que em verdade encobrem, que simu-
    lam dizer enquanto impedem que se
    diga. Que falam de corpos negros, de
    territórios de favela, de uma ordem de
    controle da riqueza e do poder atraves-
    sada pelas punições corporais. Um
    mundo em que a disciplina do traba-
    lho nunca esteve desembaraçada nem
    do suplício – as surras públicas, as hu-
    milhações – nem do controle domésti-
    co e discricionário.
    Talvez uma das coisas mais ator-
    doantes no Brasil hoje seja justamente
    lidar com a equação ética e estética
    que se alardeia sem pudores em torno
    desses tropos coloniais que tão pro-
    fundamente nos conformam enquan-
    to sociedade. O gozo com o suplício, a
    defesa estridente da execução sumá-
    ria, a vociferação do desejo de “banir”
    as diferenças indesejadas mostram-
    -nos que há uma aposta cênica de
    grande rentabilidade política que en-
    volve diretamente os modos como li-
    damos coletivamente com vida e mor-
    te ou, para ser mais precisa, com vivos
    e mortos, e, consequentemente, com
    seus vestígios, marcas e presenças.
    Em outubro de 2018, o deputado
    que agora enaltece os policiais da
    maior chacina em mais de uma década
    no Rio de Janeiro protagonizava a já
    mencionada cena de rasgar a placa em
    homenagem a Marielle Franco. Repli-
    cada estratégica e exaustivamente em
    diversas mídias, a fotografia encenava
    uma batalha política e estética com
    fortíssimas marcas de gênero, sexuali-
    dade, raça, classe e territorialidade.
    Vestindo camisetas com as imagens do
    então candidato Jair Bolsonaro, os dois
    homens brancos sorriam triunfantes
    com a placa rasgada nas mãos. Em seu
    apoio nos meios de comunicação veio
    Flavio Bolsonaro, defendendo que sua
    atitude visava apenas “restaurar a or-
    d e m”,^6 trocando o nome da vereadora,
    mulher negra, lésbica, favelada e de
    esquerda, covardemente assassinada
    em 14 de março desse mesmo ano, pe-
    lo que seria a placa original. A praça
    voltaria, assim, a ser a Praça Floriano,
    homenageando o marechal Floriano
    Peixoto, que permanece ali imobiliza-
    do sob forma de estátua, mesmo que
    ninguém conheça por esse nome a fa-
    mosa Cinelândia.
    Achille Mbembe, ao discorrer so-
    bre os monumentos coloniais, propõe
    que estes pertencem a um “duplo uni-
    verso da necromancia e da geoman-
    c i a”,^7 estando, portanto, atravessados
    simultaneamente pela celebração
    constante aos mortos e pela tentativa
    de adivinhação do futuro por meio das
    marcas que deixam na terra. Diz-nos
    ainda que “essas estátuas funcionam
    como ritos de evocação dos defuntos,
    aos olhos dos quais a humanidade ne-
    gra nunca contou para nada – razão


1 Vera Telles, “A violência como forma de governo”,
Le Monde Diplomatique Brasil, fev. 2019.
2 Frantz Fanon, Os condenados da terra, Editora da
UFJF, Juiz de Fora, 2005.
3 Michael Taussig, Xamanismo, colonialismo e o ho-
mem selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura,
Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1993.
4 Dados do ISP – Instituto de Segurança Pública do
Rio de Janeiro, http://www.isp.rj.gov.br.
5 Grace Cho, Haunting the Korean Diaspora. Sha-
me, secrecy and the forgotten war [Assombrando
a diáspora coreana. Vergonha, segredo e a guerra
esquecida], University of Minnesota Press, 2008.
6 Exame, 4 out. 2018.
7 Achille Mbembe, Crítica da razão negra, N -1 Edi-
ções, 2018, p.226.
8 Ibidem, p.227.

pela qual jamais tiveram quaisquer es-
crúpulos em fazer, por nada, verter seu
s a n g u e ”.^8 Se seguirmos esse raciocí-
nio, a ruptura da placa como “restau-
ração da ordem” não deixa de fazer
parte de uma batalha por meio dos
mortos e, mais que isso, por meio da
busca por ressuscitar alguns mortos e
sepultar definitivamente outros. Ou,
indo além, de uma batalha pela opor-
tunidade de festejar a matança como
parte central de nossa matriz colonial
de dominação, controle e acumulação
de poder.
Recentemente, já em 2019, soube-
-se que o deputado exibia metade da
placa rompida em seu gabinete na As-
sembleia Legislativa estadual. Como
troféu ou, mais precisamente, como
fetiche, ela ali condensava camadas de
sentido, saturava-os pela exibição
exaustiva, pelo excesso, pela obsceni-
dade. Mas os sentidos, como os fantas-
mas, não se deixam aprisionar tão fa-
cilmente. Em resposta à placa rasgada,
foram feitas e distribuídas na mesma
praça (que segue não sendo chamada
de Floriano), mais mil placas. O rosto
de Marielle permanece estampado em
muros, em silhuetas, projetado em
imagens, corporificado nas três mu-
lheres negras de sua mandat A que fo-
ram eleitas e em mais tantas e tantas
outras que a têm como referência. A
exacerbação do desejo pela morte co-
mo forma de governar territórios e po-
pulações negros, periféricos e favela-
dos – a cidade do colonizado, o sertão,
o “lá” – que transparece na legitima-
ção das chacinas ou na “restauração”
da ordem pode e deve ser entendida
como parte da geomancia colonial de
que fala Mbembe. São atos que se pre-
tendem divinatórios, imaginando ler
nos sinais o mundo que, em verdade,
buscam reencenar exaustivamente.
Um chamado ao passado que se pre-
tende futuro. Mas esse não é o único
mundo possível, da mesma forma que
os mortos monumentalizados não são
os únicos que permeiam nosso mun-
do. E os mortos, como os vivos, não pa-
ram quietos.

*Adriana Vianna é professora do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional – UFRJ.

© Daniel Kondo
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