OÚLTIMONAVIONEGREIRO 65
No princípio do século XX, os companheiros
de viagem já tinham passado mais tempo nos
EUA do que na sua terra natal. A maioria adopta-
ra apelidos americanos, convertendo-se ao cris-
tianismo. Vários casaram-se com americanos de
origem africana. Aderiram aos costumes locais,
embora mantendo as culturas que lhes eram
queridas. Os seus filhos, que frequentaram a es-
cola, cresceram divididos entre estes dois mun-
dos. Algumas destas crianças, nascidas america-
nas, falavam os idiomas dos pais: Matilda servia
de intérprete à mãe. Cada um possuía um nome
americano para usar no mundo exterior, onde
eram frequentemente ostracizados e insultados
como macacos e selvagens.
Helen Jackson, neta de Ossa Keeby, confiden-
ciou: “Éramos todos uma só família. Aprende-
mos a chamar ‘primo’ a todos os outros africanos
da nossa idade. Sabíamos que eles eram iguais
a nós e que nós éramos diferentes de todos os
outros.” As crianças sentiam-se seguras. “Tí-
nhamos terras, tínhamos família”, disse Olivette
Howze, bisneta de Abache, num artigo publicado
em 2003. “Vivíamos bem. Sinto-me feliz por ter
sido criada aqui.”
Se a sua aldeia natal era um porto seguro, as
terras natais africanas eram os lugares idílicos
com que as mães e pais sonhavam. “Diziam que
lá era bom”, recordou Eva Allen Jones, filha de
POUCO DEPOIS, os africanos receberam a compa-
nhia de algumas famílias afro-americanas que aban-
donavam as quintas para procurarem trabalho nas
fábricas e no porto vizinhos. Em 1910, a comunidade
edificou a Escola de Formação de Mobile County, a
qual, ao longo das décadas que se seguiram, haveria
de formar dezenas de pregadores, professores,
empresários e até alguns atletas profissionais.
Na década de 1960, duas gigantescas fábricas
de papel funcionavam de noite e de dia. Havia
muitos empregos e mais de doze mil pessoas habi-
tavam Africatown. Anderson Flen cresceu durante
o apogeu de Africatown e recorda-se dela como
um lugar onde as crianças podiam falar com as
pessoas mais velhas, sentadas nos seus alpendres,
e as pessoas mais velhas garantiam que nenhuma
criança passava fome.
Enquanto me leva a dar uma volta pela cida-
de, Anderson conta que o acesso à água era mais
fácil quando ele era novo. “Apanhávamos perca,
rabeta, tainha, peixe-gato, solha, caranguejo-
-azul. Havia aqui pomares, bagas e figueiras. Foi
um sítio extraordinário para crescer.”
A escola de formação era o coração e a alma da
comunidade. Segundo Anderson Flen, a cam-
painha da escola tocava por tudo e por nada.
SALVANDO AFRICATOWN
CAPÍTULO 3
TEXTO DE JOEL K. BOURNE, JR.
Kupollee. “Vejo-os sentados e a chorar. Vejo o
meu pai e o Tio Cudjo a chorar e a verter lágri-
mas, falando sobre o regresso a casa.”
Kossola morreu em 1935 e Redoshi no ano
seguinte. Outros poderão ter vivido um pouco
mais. Na escravidão e na liberdade, da juventude
à idade adulta, estes homens e mulheres resis-
tiram à opressão. Louvaram e defenderam com
vigor as suas culturas, transmitindo o que pude-
ram aos seus filhos. Os que se fixaram em Afri-
can Town, que ainda existe, criaram um lugar
para se refugiarem dos americanos, fossem eles
brancos ou negros. A sua comunidade adaptou-
-se, mas o sucesso baseou-se indubitavelmente
nos valores fundamentais africanos da primazia
à família e à comunidade.
Os companheiros de viagem do Clotilda aguen-
taram a separação dos que amavam, a Passagem
do Meio, a escravatura, a Guerra Civil, as leis de
Jim Crow e, alguns deles, a Grande Depressão.
Nunca recuperaram da tragédia da sua juventu-
de, mas mantiveram a sua dignidade, união e o
orgulho de serem quem eram e de terem vindo
de onde vieram. A sua história fala-nos de enor-
me força de vontade e realizações. Mas, acima de
tudo, fala-nos de perdas irremediáveis. Várias dé-
cadas depois de pôr o pé em terra, desembarcan-
do do Clotilda, Ossa Keeby disse: “Volto a África
todas as noites, nos meus sonhos.”