A NOVA VAGA DE INCÊNDIOS 103
combate a incêndios florestais convencidos de que
a solução para o problema se encontra numa nova
maneira de viver com o fogo.
Segundo estes dois cientistas de incêndios, a
melhor estratégia consiste numa abordagem a
tempo inteiro à defesa contra os incêndios em
vez da abordagem sazonal dos bombeiros. Defen-
dem que o aparato do combate a incêndios terá
de criar e manter linhas de fogo ao longo de todo
o ano, de modo a aumentar a preparação para o
combate aos incêndios quando estes acontece-
rem, mantendo igualmente a construção imobi-
liária longe das linhas de fogo estabelecidas.
No entanto, segundo Tiago Oliveira, o proble-
mas dos incêndios não será resolvido sem que
primeiro se desenvolva um novo tipo de paisa-
gem rural, em que as pessoas voltem a valorizar
a floresta e defendam a terra do fogo por terem
voltado a utilizá-la, quer para apascentar ovelhas
e cabras, quer para apicultura, turismo ou produ-
ção de energia de biomassa em pequena escala.
Esta solução não é tão atraente como comprar
novos helicópteros de combate, reconhece com
pesar. Também não tem o apelo romântico do
regime de bombeiros voluntários. “Nunca hou-
ve uma pessoa louvada como herói por ter evi-
tado uma crise antes que ela acontecesse”, reco-
nhece Tiago Oliveira.
Mesmo assim, ele crê que o chamado modelo
de governação policêntrica, termo da gíria polí-
tico-científica para designar a delegação da au-
toridade e dos recursos nos habitantes, de modo
a que estes resolvam os seus problemas a nível
local, combinada com uma economia rural re-
vitalizada, são a única solução de longo prazo
capaz de permitir que o interior de Portugal ou
outros ecossistemas mediterrâneos como a Cali-
fórnia, o Chile, a Grécia, ou Espanha, consigam
gerir o seu enorme risco de incêndio – um risco
que está a deslocar-se para norte, rumo aos terri-
tórios não preparados do resto da Europa.
Isto está a acontecer em alguns estudos de
casos. Em Proença-a-Nova, a empresa tecnoló-
gica Novatech tem agora a sua sede depois de
sair de Lisboa. Dezenas de jovens trabalhadores
estão a casar-se e a regressar a casas de campo
onde aparam a relva e tratam dos pomares. Na
vizinha aldeia da Ferraria de São João, o hote-
leiro Pedro Pedrosa mobilizou os vizinhos para
erradicarem os eucaliptos que infestavam a sua
aldeia, criando socalcos plantados com sobrei-
ros autóctones, cuja casca grossa funciona como
retardador do fogo. A norte da vila, segundo Pe-
dro Pedrosa, um carvalhal com duzentos anos
travou o avanço das chamas antes de estas de-
vorarem a vila inteira.
“Precisamos de abandonar a abordagem de
cima para baixo”, declara o director da agência de
gestão integrada de fogos rurais. Durante dema-
siado tempo, as populações rurais contaram com
a autoridade estatal centralizada ou com o regime
de bombeiros voluntários para resolverem o pro-
blema dos incêndios florestais. Se conseguirmos
servir-nos do perigo dos incêndios para inspirar
uma recolonização das regiões rurais do interior,
afirma Tiago Oliveira, “Portugal pode ser um estu-
do de caso para o resto da Europa”.
Contudo, ele sabe que há uma bomba-relógio
a fazer tiquetaque nos bastidores. As mudan-
ças feitas em Lisboa ainda não se enraizaram no
mundo rural, onde pinheiros ardidos continuam
a espreitar nas colinas desnudadas como escovas
de dentes gastas. Em muitas regiões, já há euca-
liptos atarracados, carregados de óleo, a crescer
no solo acastanhado. Uma das repercussões sur-
reais de várias gerações de negligência nas terras
montanhosas por parte da administração central
é o facto de o governo não saber quem são os pro-
prietários de grande parte das terras do interior, o
que inviabiliza quase por completo a adopção de
políticas públicas de ordenamento do território,
embora esteja em curso um cadastro ordenado
pelas autoridades nacionais.
Em contrapartida, a população rural, segundo a
antiga bombeira Filipa Rodrigues, está mais enfra-
quecida e mais desmoralizada do que nunca. Dois
anos depois dos incêndios de 2017, a experiência
da tempestade de fogo deixou-lhe cicatrizes no
espírito e nas extremidades do corpo. “Nunca tí-
nhamos falhado antes”, diz ela em sua casa, em
Castanheira de Pêra. “Agora, basta-me ver fogo e
começo a tremer”, diz, apontando para a lareira.
“Vivemos todos os dias com as consequências do
que aconteceu e as pessoas que perdemos.”
Torna-se fácil, afirma, abandonar as terras que
as outras pessoas já estão a abandonar. Filipa não
quer partir, mas, com uma economia local limita-
da, uma filha jovem e um grave risco de incêndio
no horizonte, não tem a certeza de conseguir ficar.
A maior parte dos seus amigos vive em Lisboa, en-
quanto a vegetação vai crescendo nos terrenos das
famílias deixados para trás. Todos os dias vê euca-
liptos a crescer, de forma descontrolada, a poucos
metros da casa onde dorme.
Não sabe quem é o dono do terreno, nem quan-
do saltará a próxima faúlha. j