O Estado de São Paulo (2020-03-08)

(Antfer) #1

João Prata


Caetano Veloso gostou do primeiro livro sobre o
Brasil da portuguesa Alexandra Lucas Coelho,
mas disse que faltava Bahia. Ele também elogiou a
segunda publicação dela sobre o País em um vídeo
disponível no YouTube e repetiu a crítica em tom
de brincadeira: faltava Bahia. A escritora ficou uns
dias pensando sobre o assunto e pronto.
Foi como baixar um santo. Em um mês e meio,
escreveu as 232 páginas do novo romance. E olha
que ela é ateia, mas, por ter vivido no Rio, passado
uns tempos em Salvador e visitado dezenas de ter-
reiros, passou a acreditar em milagres. O livro nas-
ceu com o beijo a Caetano no título, índice e tudo o
mais, e encerra a sua trilogia sobre o País.
Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano
Veloso chama a atenção logo de cara (algo que se
mantém ao longo da narrativa) para particularida-
des da história do Brasil, curiosidades do passado
pouco conhecidas dos brasileiros. Fica ainda mais
interessante no sotaque português de Alexandra –
a editora Bazar do Tempo respeitou o texto origi-
nal. Os primeiros passos dos colonizadores na re-
gião de Porto Seguro, a construção da igreja do
Senhor do Bonfim, o sincretismo religioso, Gan-
tois, Mãe Menininha, Jorge Amado, o samba de
roda do recôncavo, as esculturas de Tatti Moreno,
tem de tudo um pouco nas idas e voltas dela.
E, claro, Caetano é figura onipresente. Seja no
pôr do sol no Farol da Barra ou ao comprar peixe
no Rio Vermelho, uma letra do artista aparece e é
devidamente esmiuçada pela escritora. Ela expli-
ca, por exemplo, o que diabos Caetano quis dizer
quando escreveu “bandeira branca enfiada em
pau forte” na canção Triste Bahia, do disco Transa.
Ela começa lembrando que a composição mistura
um soneto de Gregorio de Mattos com cantos de
capoeira. E vai pontuando passo a passo até dizer
que a tal bandeira enfiada em pau forte, no período
da escravidão, servia para assinalar um terreiro.
A Bahia, estação primeira do Brasil, segue sendo
redescoberta por Alexandra. O pelourinho, a casa
de Yemanjá, Marighela, Padre Vieira, Castro Al-
ves, nada escapa. O encontro de João Gilberto
com os Novos Baianos, o disco Acabou Chorare,
toda a riqueza cultural do País vai surgindo em
meio às experiências vividas pela autora não só em
Salvador. Ela não resistiu e foi a Santo Amaro da
Purificação, onde nasceu Caetano e Maria Bethâ-
nia, a quem Mãe Menininha e o escritor argentino
Julio Cortázar, diziam ser uma pessoa só. A seguir,
a conversa de Alexandra com o Aliás:


lVocê já tinha pensado em fechar a trilogia brasi-
leira com a Bahia ou a ideia veio mes-
mo após os comentários do Caetano?
Nunca tinha pensado fazer um livro
passado na Bahia, achei mesmo que
não iria escrever mais sobre o Brasil.
Mas, em julho de 2019, Caetano veio
tocar em Portugal, ele lera o meu ro-
mance anterior, Deus-dará, e repetiu
algo que já me dissera anos antes (a
propósito de Vai, Brasil, um livro de
crônicas): que faltava Bahia. A leitu-
ra detalhada de Caetano me emocio-
nou e fiquei uns dias marinando nis-
so. Então veio a ideia desse livro,
com título e índice, como é hoje. Cae-
tano tinha razão duas vezes, faltava mesmo Ba-
hia e eu precisava fazer esse livro. Aí ele se tor-
nou o fecho de uma trilogia.


lAntes de ser escritora, você foi repórter de rádio,
chegou a ser correspondente. Como foi a transição?


Sempre quis escrever e ver o mundo. Isso levou-
me ao jornalismo, que me absorveu por muitos
anos. Mas sempre soube que um dia eu ia escre-
ver livros, essa necessidade estava lá desde o co-
meço. Só não publiquei antes porque vivi intensa-
mente a vida de redação e reporta-
gem. Então os livros levaram-me ao
jornalismo e o jornalismo devolveu-
me aos livros.

lDe que maneira cobrir guerras no
Oriente Médio impactou a sua vida?
Cobri conflitos em várias partes, co-
meçando por Rússia, Bósnia. Israel/
Palestina foram anos. É parte da mi-
nha vida, da identidade em movimen-
to. Porque não escolhemos de onde
vimos, mas somos transformados pe-
lo que nos acontece, pelo que esco-
lhemos, ou lutamos para escolher.
Nasci lisboeta, portuguesa, branca, e fui sendo
transformada por tudo o que me foi acontecen-
do, lugares e pessoas.

lQuando decidiu vir morar no Brasil?
Em 2010, já passara tempo a cobrir territórios co-

lonizados por outros, e queria ser atravessada pe-
la experiência de morar no maior território colo-
nizado por Portugal. Não para expiar uma culpa,
noção cristã que não me interessa, como se sacu-
díssemos o pecado e já está. Mas como uma cons-
ciência, saber de onde viemos, que isso tem um
significado, em muitos casos implicou privilé-
gios, e que somos nós que decidimos o que fazer
com isso perante a herança da violência colonial
que continua a marcar o cotidiano do Brasil.

lVê alguma relação entre a vida no Oriente Médio
com o período em que morou no Rio de Janeiro?
Do ponto de vista do conflito, o Rio é muitas ve-
zes uma zona de guerra, sobretudo para quem
mora na favela. O aparato da PM, da tropa de eli-
te, o armamento, as incursões nos morros e peri-
ferias, os combates dentro de territórios que o
Estado deixou entregues a si mesmos, os homicí-
dios e ferimentos, o risco constante de ser víti-
ma de violência, especialmente para quem é jo-
vem e negro. Depois, de um ponto de vista his-
tórico, o Brasil tem uma população significativa
de sírio-libaneses e comunidades judaicas. Das
ruas do Saara, no centro do Rio, às esfihas no bo-
teco, há muitos resquícios dessa herança. Gosto

muito daquela frase de Jorge Mautner: que Bra-
sil é Oriente. Em Deus-dará, há longos trechos so-
bre a herança árabe do Brasil. E desde o meu pri-
meiro romance, inventei um personagem cario-
ca, Karim, que foi morar na Síria, é referido em
todos os meus romances, mas ainda não apare-
ceu em nenhum. Em Deus-dará, dois dos protago-
nistas são irmãos dele.

lComo e quando você se aproximou do Brasil?
Desde que, no fim da infância, começo da adoles-
cência, escutei um disco de João Gilberto que vie-
ra do Brasil, e logo os discos de Caetano Veloso,
e logo li Jorge Amado. Então o meu primeiro Bra-
sil foi a Bahia.

lNo livro, você compara Caetano a um orixá...
Não é que compare Caetano a um orixá (risos).
Digo a certa altura no livro, zoando um pouco de
mim – da minha paixão por esse artista incrível
que temos a sorte de ter por contemporâneo –,
que Caetano Veloso é o meu orixá. Sendo que
tanto eu como ele somos ateus, mas ateus que es-
tão sempre a ver milagres, até porque o Brasil faz
com que seja assim.

lComo você vê a troca cultural entre Brasil e Por-
tugal? Acha que os portugueses continuam a olhar
mais para cá do que o inverso?
Ui. Isso é um tema de 520 anos (risos). E os
meus livros luso-brasileiros são sobre isso. En-
tão, como resumir? Nas Cinco Voltas... regresso
ao começo desta história para tentar atar algu-
mas pontas. Uma delas é explicar por que, para
mim, Portugal e Brasil não são nem podem ser
países-irmãos. Porque é uma relação fundada na
violência, no poder de um sobre outro, na extor-
são de um por outro. Mas podemos, sim, um a
um, dois a dois, por aí vai, ser amigos, amantes.
Podemos criar laços muito fortes e vários, trans-
formando esta história, tendo consciência dela.

lVocê também menciona a admiração por outros
baianos, como Jorge Amado. Quais são seus escri-
tores brasileiros favoritos?
Tenho muitos amigos brasileiros escritores, en-
tão fica difícil. Deixei de ler Jorge Amado na ado-
lescência, e aí entraram em força Veríssimo, de-
pois Drummond, Clarice e por aí fora. Guima-
rães Rosa, Raduan Nassar mudaram a minha rela-
ção com a língua. Mas a lista é longa. Romancis-
tas, poetas, cronistas, ensaístas. Machado, Nel-
son Rodrigues, Euclides, Cecília são personagens
mesmo de vários dos meus livros. Dos contempo-
râneos, cito um que já não está aqui, cometa ma-
ravilhoso: Victor Heringer. E vejo a emergência
dos morros, das periferias na escrita.

lDepois da trilogia brasileira, qual será o cenário
do seu próximo livro?
Vai chamar-se Levante. Vai passar-se agora em
Alexandria, Líbano, Síria, Israel/Palestina. É o ro-
mance em que finalmente aparece o tal persona-
gem Karim. Espero começá-lo mal termine uma
peça de teatro em que estou trabalhando, a mi-
nha primeira.

A escritora
portuguesa
Alexandra
Lucas Coelho
conclui sua
trilogia sobre o
Brasil com obra
que nasceu de
um pedido de
Caetano Veloso

OLHAR

PORTUGUÊS PARA A


BAHIA

CINCO VOLTAS NA
BAHIA E UM BEIJO
PARA CAETANO VELOSO
AUTORA:
ALEXANDRA LUCAS COELHO
EDITORA: BAZAR DO TEMPO
232 PÁGS., R$ 62

Aliás, Literatura


Reportagem. Antes de dar início à carreira literária, Alexandra Lucas Coelho cobriu conflitos na Bósnia e no Oriente Médio, e sua experiência jornalística foi fundamental para seus livros


TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Farol da Barra. Ponto turístico de Salvador marca presença no novo livro de Alexandra

RUI GAUDENCIO/ED. BAZAR DO TEMPO

%HermesFileInfo:E-1:20200308:E1 DOMINGO, 8 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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