O Estado de São Paulo (2020-03-15)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-21:20200315:
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 Metrópole A21


ENTREVISTAS


‘Pandemia atual


é pior do que Sars


em muitos sentidos’


Roberta Jansen / RIO


Virologista da Universidade de
São Paulo (USP) responsável
pela pesquisa de vírus emergen-
tes, Paolo Zanotto lança, em
tom dramático, um apelo públi-
co para enfrentarmos imediata-
mente o novo coronavírus. É
preciso implementar – já – medi-
das de testagem em massa e dis-
tanciamento social, se quiser-


mos evitar um colapso total do
sistema de saúde por causa da
covid-19, afirma. Segundo ele,
não dá para esperar mais.
A seguir, confira a entrevis-
ta de Zanotto ao Estado:

lPor que o senhor acha que de-
vemos apressar as medidas de
isolamento no Brasil mesmo ain-
da tendo poucos casos de covid-
19? Muitos especialistas acham
que podemos esperar...
Não importa o que os especia-
listas acham, a opinião deles.
O que importa, em ciência, são
os fatos. Então, é só olhar para
o que está acontecendo no
mundo, olhar para a curva epi-
demiológica dos outros países.

lE o que essas curvas nos mos-
tram?
Os países que tomaram as me-
didas mais precocemente, co-
mo Cingapura, Japão, Coreia
do Sul e Hong Kong, consegui-
ram manter a curva de cresci-
mento dos casos mais achatada
e evitaram o crescimento expo-
nencial do número de casos.
Por outro lado, Itália, Irã, Fran-
ça e Estados Unidos estão ten-
do um crescimento exponen-
cial. Na Lombardia, uma das re-
giões mais ricas da Itália, o sis-
tema de saúde está em colapso
total porque demoraram a agir.
Faltam respiradores, e os mais
idosos estão sendo deixados pa-
ra morrer para que os mais no-
vos possam ser salvos. Não es-
tou tentando disputar ideia de
especialista, estou falando so-
bre fatos, como cientista isso é
mais importante do que opi-
nião. Estou tentando mostrar e
alertar a sociedade e gestores.

lQuais medidas deveriam ser
adotadas?
Precisamos testar o maior nú-
mero possível de pessoas, fa-
zer uma testagem maciça mes-
mo. Temos de isolar os que es-
tiverem com a covid-19 e seus
contatos mais próximos. Para-
lelamente, é preciso adotar e
ampliar medidas de distancia-
mento social, como evitar
aglomerações, incentivar o
trabalho e o estudo em casa, o
isolamento dos idosos. As cur-
vas de crescimento da doença
estão mostrando um compor-
tamento ascendente modera-
do nos países em que essas
medidas foram implementa-
das no momento correto.
Eles estão conseguindo con-
trolar o surto porque fizeram
intervenções antes do cresci-
mento exponencial e conse-
guiram impedir a saturação
do sistema hospitalar.

Fabiana Cambricoli


Com mais de 1,5 mil novos ca-
sos de coronavírus em ape-
nas um dia, a Espanha impôs
ontem um confinamento qua-
se total para os seus 46 mi-
lhões de cidadãos, que só po-
derão sair de casa por motivo
de trabalho ou necessidade
máxima, como comprar comi-
da ou ir ao hospital.
A medida, de aplicação ime-
diata e anunciada pelo chefe de
governo, Pedro Sánchez, faz
parte de um amplo pacote de
medidas aprovado dentro da de-
claração do estado de alerta por
14 dias no país, o segundo mais
castigado na Europa pela covid-
19, com mais de 5,7 mil infecta-
dos e 136 mortos.
Os cidadãos só poderão sair
de casa para ir ou voltar do traba-
lho, fazer compras essenciais,
ajudar idosos, crianças ou pes-
soas dependentes, passear com
animais e ir a centros de saúde
ou instituições financeiras, em
casos de força maior.
“A circulação terá de ser reali-
zada individualmente, exceto
para as pessoas com dificulda-
de motora”, indicou Sánchez
após uma reunião extraordiná-
ria do conselho de ministros,
que durou mais de sete horas.
Em menos de uma semana, o
número de infectados na Espa-
nha cresceu dez vezes. Além de
limitar a circulação de pessoas,
o governo determinou o fecha-
mento do comércio, ratificou a
suspensão das aulas aplicada
nos últimos dias e se dotou da
capacidade de intervir em bens
privados, em seus esforços con-
tra o coronavírus.
Em um país altamente descen-
tralizado, com as responsabilida-
des sanitárias nas mãos de cada
uma de suas 17 regiões autôno-
mas, o estado de alerta permitirá
a Sánchez e seus ministros assu-
mir a gestão de todo o território.
A região mais afetada é a de
Madri, que reúne metade dos ca-
sos (2.940), seguida pela Catalu-


nha (509). Apesar da concentra-
ção na capital, todas as 17 comu-
nidades autônomas já confirma-
ram infecções.

As medidas duras divergem
da postura adotada até a sema-
na passada pelos governantes
espanhóis, agora criticados por

permitirem grandes aglomera-
ções e não restringirem eventos
e deslocamentos ainda no iní-
cio do surto.

Grande atos. No fim de sema-
na passado, a Espanha já tinha
quase 500 casos e 5 mortes con-
firmadas, segundo dados da Or-
ganização Mundial da Saúde
(OMS), mas manteve grandes
atos já marcados. No sábado,
um grande ato pelo Dia Interna-
cional da Mulher ocorreu em
Madri. No dia seguinte, o parti-
do Vox organizou um comício
com 9 mil pessoas na capital.
Até então, não havia nenhu-
ma recomendação para evitar
aglomerações. O governo só
suspendeu as aulas na terça-fei-
ra, quando o número de casos
de covid-19 havia saltado para

1.024, segundo a OMS.
Brasileiros que vivem na Es-
panha confirmaram que, até a
semana passada, a vida seguia
normal na capital do país. “No
fim de semana estava tudo aber-
to, as ruas estavam cheias por
causa dos atos. Até fui ao museu
no domingo. Tinha muita gente
nos bares e restaurantes”, con-
ta o publicitário Yan Graller de
Oliveira, de 25 anos.
Ele se mudou de São Paulo pa-
ra trabalhar em Madri há ape-
nas dez dias e agora está confi-
nado em casa. “Estamos traba-
lhando home office e procuro
sair só para ir ao mercado. Sei
que não estou no grupo de
maior risco, mas evito sair na
rua porque tenho medo de ficar
doente sozinho aqui”, relata. /
COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS

Professor da Universidade de
Michigan e envolvido nos pla-
nos de emergência dos Esta-
dos Unidos contra infecções
emergentes, o infectologista
Sandro Cinti avalia que muitos
estão em pânico com o corona-
vírus por receberem mensa-
gens contraditórias sobre o
problema. Ao Estado, ele frisa
que a maioria dos infectados
não vai apresentar nada mais

grave. Mas que medidas drásti-
cas são importantes para prote-
ger os mais vulneráveis.

lMuitos países estão anuncian-
do medidas drásticas. Com isso,
está havendo pânico na popula-
ção. Está havendo um exagero?
Não. Temos pânico porque,
por um lado, estamos dizendo
às pessoas que elas não devem
se preocupar, que a situação
não é muito grave. Mas, por ou-
tro lado, estamos anunciando
medidas mais drásticas, como
isolamento de cidades, cancela-
mento de eventos. As pessoas
estão confusas diante de duas
mensagens aparentemente
contraditórias.

lMas elas não são contraditó-
rias? Estamos fazendo o certo?
Sim, são medidas necessárias.
É a mitigação comunitária. A
doença, para a maioria, não se-
rá um problema. Mas para pes-
soas mais velhas e com outras
condições de saúde (cerca de
20% da população), pode ser
muito grave. O que estamos fa-
zendo é tentar proteger os
mais velhos e vulneráveis.

lUm dos temores em vários paí-
ses é sobrecarregar o sistema de
saúde. Na Itália estão faltando
respiradores. Como evitar isso?
A mitigação comunitária tem
por objetivo também diminuir
o impacto nos hospitais. Se re-
duzirmos o número de interna-
ções, teremos menos proble-
mas como falta de leitos.

lEntão faria sentido que o Bra-
sil, ainda com poucos casos, ado-
tasse medidas de isolamento?
Sim. Até porque, de forma ge-
ral, a probabilidade é de ter-
mos muito mais casos do que
os registrados. Se os planos de
mitigação funcionarem, vamos
sair disso com muito menos
mortes. É claro que, lá na fren-
te, se nada de mais grave tiver
acontecido, vão dizer que exa-
geramos. Quando as medidas
funcionam, ninguém percebe.

lEssa é a pior epidemia que vi-
venciamos desde pelo menos a
da Síndrome Respiratória Aguda
Grave (Sars), em 2003?
A letalidade da Sars era muito
mais alta (cerca de 10% dos ca-
sos), mas ficou muito mais limi-
tada. Essa pandemia é mais gra-
ve. O vírus é menos virulento
(a letalidade média é de 3,4%),
mas teremos número de mor-
tes muito mais alto porque se
dissemina mais facilmente. En-
tão, sim, é pior do que a Sars
em muitos sentidos. / R.J.

‘Temos de fazer testes


maciços e incentivar


isolamento de idosos’


Paolo Zanotto, virologista da Universidade de São Paulo (USP)


TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO - 18/2/2016

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


‘Uma semana


atrás, o medo


não existia’


lA França determinou ontem o
fechamento de todos os lugares
“não essenciais” do país, incluin-
do bares, restaurantes, discote-
cas, cinemas e lojas não alimentí-
cias. O governo francês informou
ter tomado a medida por conside-
rar que os cidadãos não respeita-
ram avisos para evitar aglomera-

ções. O anúncio foi feito pelo pri-
meiro-ministro Édouard Philippe,
em entrevista coletiva. O país
contabilizava, até ontem, 4.480
infectados e 91 mortos em decor-
rência do coronavírus.
Nos EUA, a restrição a voos
vindos da Europa imposta pelo
presidente Donald Trump na
quarta-feira, por 30 dias, foi am-
pliada de forma a incluir a Grã-
Bretanha e a Irlanda, que ha-
viam ficado de fora do banimento
inicial. A inclusão dos dois países
passa a valer amanhã.

População só está autorizada a sair em caso de trabalho essencial ou motivo de necessidade máxima, como compra de alimentos


Mitigação. ‘Medidas são para proteger os mais vulneráveis’

Pânico é causado
por mensagens sobre
a doença que parecem
contraditórias, diz
infectologista

Sandro Cinti, professor da Universidade de Michigan

Moro em Madri há 15 anos e
trabalho como fotógrafa free-
lancer para algumas publica-
ções e como professora de
Fotografia em uma universida-
de e uma escola de artes vi-
suais. Até uma semana atrás, o
medo não existia. As pessoas
sabiam dos casos, mas era
aquela coisa de achar que não
vai acontecer com a gente.
No fim de semana, cheguei a
ir ao teatro e saí para comer.
Na terça-feira à noite, o gover-
no avisou que as escolas de
Madri seriam fechadas um dia
depois. Foi aí que acho que as
pessoas começaram a perce-
ber que a coisa era séria.
Para não ficarmos confinados
e na paranoia, eu, meu mari-
do e meu filho de 8 anos pega-
mos nosso gatinho e viemos
para uma chácara que temos
em um vilarejo na cidade de
Sacramenia, que fica a uns
180 quilômetros de Madri.
Viemos sem planejar muito,
não fizemos grandes com-
pras, pensávamos que era pa-
ra ficar umas duas semanas.
Hoje (ontem), as coisas piora-
ram e o governo decretou
emergência. Não sabemos
quanto tempo vamos ficar
aqui. A cidade tem 500 pes-
soas, não tem nem ilumina-
ção pública, mas estamos nos
sentindo sortudos porque
aqui temos um jardim grande,
mais espaço. Em Madri, estão
todos confinados nos seus
apartamentos.

Luana Fischer
FOTÓGRAFA, 45 ANOS

DEPOIMENTO

França fecha loja e


bar; EUA impedem


voos da Inglaterra


NACHO DOCE/REUTERS

Espanha confina 46 milhões em casa


Alerta. Governo espanhol adotou postura mais dura contra surto após o país registrar 1,5 mil casos em um único dia

SCOTT C. SODERBERG -2/26/2020

Alerta. É preciso impedir a saturação do sistema hospitalar


Países que tomaram


as medidas de forma
precoce conseguiram


evitar a explosão do


número de casos, afirma

Free download pdf