O Estado de São Paulo (2020-03-22)

(Antfer) #1
Martin Grossmann ]

Provavelmente havia outro motivo subjacente
aos apresentados por Ciccillo Matarazzo, em abril
de 1963, ao oficializar a doação de todo o patrimô-
nio do Museu de Arte Moderna (MAM) para a
USP, o que levou à extinção temporária deste mu-
seu e à criação do MAC. Instalado provisoriamen-
te em diferentes edifícios, só em 2009 o MAC ga-
nhou sede definitiva. Já o MAM iniciou um novo
colecionismo, desenvolvendo uma outra forma
de atuação museológica na estrutura cultural da
cidade, principalmente a partir da presidência de
Milu Vilela, iniciada em 1995.
Ciccillo, paradoxalmente, não só capitaneou a
extinção do MAM como também a sua criação em
1948 e foi responsável pela criação da Bienal Inter-
nacional de Arte de São Paulo em 1951. O MAM
criou e foi responsável pela gestão da Bienal até
maio de 1962 quando a Fundação Bienal de São
Paulo foi oficializada. A USP recebeu em 1963 uma
doação substantiva de 1.263 obras pertencentes à
coleção do extinto MAM, como também outras
419 da coleção de Ciccillo e outras 19 que pertencia
a ele e Yolanda Penteado. Este intrincado proces-
so acabou consolidando dois museus centrais na
América do Sul para se entender a história da arte
mundial: o Masp, cujo acervo abrange obras da
antiguidade até finais do século 19, e o MAC, com
obras icônicas do século 20, nacionais e internacio-
nais. O segundo complementa o primeiro na pers-
pectiva de uma linearidade histórica ocidental.
Mas voltando ao motivo subjacente de Ciccillo
e Yolanda, intui-se que o casal compreendeu, pela
experiência que tiveram, que o museu é uma insti-
tuição muito mais exigente, complexa e onerosa
do que uma bienal. Diante da “leveza” de uma bie-
nal, marcada por eventos espetaculares de grande
porte e com impacto imediato e garantido (apesar
de efêmero), o museu é um equipamento cultural
“pesado” necessitando de constante atenção, in-
vestimentos de curto, médio e longo prazo, bem
como de equipe permanente interdisciplinar, es-
pecializada e qualificada. Provavelmente, enten-
diam também que uma mostra bianual de arte con-
temporânea tinha, naquele momento, o perfil ins-
titucional mais apropriado para inserir no mapa
mundial o original, inventivo e potente, apesar de
contraditório, modernismo brasileiro.
Os museus de arte na capital paulista, apesar de
terem iniciado trajetória anterior a da Bienal, ocu-
param o segundo escalão na estrutura cultural,
principalmente a partir da consolidação desse mo-
delo eurocêntrico de exposição de arte na capital
paulista. O marco é indiscutivelmente a sua segun-
da edição em 1953. Esta bienal inscreve São Paulo
como metrópole mundial de arte, título que ainda
detém, mas que já foi mais marcante.
Tal quadro passou por transformações significa-
tivas nos últimos 20 anos, e o que assistimos desde
a virada do século é uma inversão: o poder da Bie-
nal começa a esmaecer e os museus, apesar dos
percalços, começaram a protagonizar. Em uma
análise “paulistocêntrica”, um dos marcos iniciais
dessa transformação foi a exposição do escultor
Rodin em 1995, que atraiu à Pinacoteca 150 mil
visitantes em menos de 40 dias. Esse fenômeno de
público motivou os governantes a investir na Pina,

que na virada do século tornou-se um dispositivo
cultural pós-modernista que inspira uma intera-
ção entre o museu, seu entorno e seu público.
A criação do Museu Afro Brasil em 2004 não só
reforça a necessidade de uma maior representati-
vidade da diversidade cultural do Brasil como tam-
bém a promove na própria categorização e concei-
tuação de museu de arte ao operar simultaneamen-
te como museu etnológico e histórico. Além disso,
a presença e variedade de centros culturais na cida-
de, em sincronia com a Bienal, os museus e outros
eventos, criaram uma potente e permanente dinâ-
mica urbana, bem como uma nova economia.
Não menos importante, temos desde os anos
1980 a presença de um mercado de arte mais estru-
turado e com ambições internacionais, contribuin-
do significativamente para a consolidação dos mu-
seus na paisagem cultural da cidade. A criação da
SP-Arte em 2005 potencializa a situação, uma vez
que esta feira atua como interface entre galerias,
colecionadores e museus. No entanto, o mercado
de arte também é um dos principais responsáveis
pelo esmorecimento na potência da arte como pro-
dução crítica de reflexão da atualidade.
Este panorama sintético indica algo que é cen-
tral para a análise da significativa transformação
em curso no contexto cultural de São Paulo na
perspectiva das artes visuais: a questão do colecio-
nismo. Como já explorado, na convivência com
um evento bienal de arte contemporânea de gran-
de impacto, o museu foi preterido pois o que “pe-
sa” mais neste caso é sua coleção e o que ela deman-
da constante e eternamente: mediação, atualiza-
ção, circulação, exposição e salvaguarda (docu-
mentação, acondicionamento, conservação, res-
tauro, segurança). O que reforça tal argumento é o
fato de que, historicamente, os dois museus da
cidade com dimensão internacional formaram
suas coleções no período inicial de sua existência e
receberam poucas atualizações dos anos 1960 até
os 90. O reinvestimento no colecionismo no Bra-
sil é mais recente e remonta à virada de século.
A Pinacoteca, em 1998, com sua reinauguração,
iniciou uma nova fase como museu mundializado,
deixando definitivamente para trás sua origem re-
gional e provinciana. Apesar de sua projeção inter-
nacional, seu colecionismo se sobrepõe ao de ou-
tros museus da cidade, como o do MAM, o do
MAC e o do CCSP. Mais uma vez aqui se faz sentir
o efeito da Bienal, já que é a arte contemporânea a
guiar as políticas de aquisição destas instituições.
O MAC continua recebendo doações de artis-
tas, mas carece de uma política de aquisição de
médio e longo prazo. Fundamental nesse caso se-
ria a proposição de uma política de aquisição per-
manente voltada à obtenção de obras de artistas e
períodos ausentes em sua coleção de cunho his-
tórico. O modernismo brasileiro, por exemplo, de-
veria ser um dos seus principais focos de atenção.
Nesse sentido, uma parceria com a coleção de arte
do Instituto de Estudos Brasileiros da USP pode-
ria ser ativada. Sua coleção de arte conceitual me-
receria também um programa permanente de
aquisição, já que constitui um dos grandes legados
de sua fase inicial como museu laboratório. A USP,
mais recentemente, se dá conta da importância
pública de seus museus e de seus potenciais.
Paradoxalmente, o MAM vem atuando mais co-

mo museu de arte contemporânea desde sua re-
fundação. Ancorado nas últimas duas décadas por
direções artísticas pautadas pelo conceito de cura-
doria, o desenvolvimento da coleção foi moldado,
em grande parte, pelas dimensões acanhadas de
sua sede gerando uma espécie de coleção “catalo-
gráfica” da produção mais recente de arte no Bra-
sil. Talvez o MAM pudesse investir em um projeto
mais audacioso, radical até, que questionasse o
entendimento de Arte Moderna na contempora-
neidade. Arte Moderna não é necessariamente si-
nônimo de Modernismo, o que seria uma concei-
tuação restritiva, gerando mais uma vez duplicida-
de com colecionismos dos outros museus da cida-
de. Arte Moderna continua relacionada à Moderni-
dade que, neste caso, é algo ampliativo, como bem
demonstra sua teoria em permanente processo de
reescrita. Se o modernismo foi a arte moderna do
século 20, qual seria a arte moderna do século 21?
O conceito de Arte Global desenvolvido por
Hans Belting em substituição ao extremamente
vago de arte contemporânea gerou muitas polêmi-
cas quando foi debatido em agosto de 2008 em
evento no Instituto Goethe. Essas polêmicas não
serão tratadas aqui, mas o relevante é que a pesqui-
sa de Belting levanta e problematiza o fato de que
uma nova condição da arte foi gerada pelo fenôme-
no da globalização e, sendo assim, influencia o co-
lecionismo não só no Hemisfério Norte como no
Sul. Para Belting, essa virada tem como marco o
ano de 1989. A queda do muro de Berlim, a dissolu-
ção da União Soviética, a primeira eleição demo-
crática depois da ditadura militar no Brasil, a inter-
net, entre outros, são fatos mais do que significati-
vos, deixando evidente que novos tempos urgem.
Inhotim é um exemplo claro de “global art”.
Seus princípios como equipamento cultural re-
montam ao marco sugerido por Belting. Trata-se
de um colecionismo que investe não só em arte
mas em um contexto específico (site-specific),
deslocado de um grande centro urbano para abri-
gar sua coleção e seus dispositivos de exposição e
de interação com o meio ambiente, entorno e o
público em geral. O seu colecionismo de arte con-
temporânea não se limita à linearidade histórica
nem à geopolítica de séculos anteriores.
Ao que tudo indica, a Pinacoteca segue essa mes-
ma tendência, bem como o Masp, em particular a
partir de 2014. O Masp tem hoje uma proposta
curatorial em sintonia com as premissas de uma
“arte global” contextualizada em uma metrópole
como São Paulo e em seu projeto arquitetônico e
museográfico singulares. Já os desafios da Pinaco-
teca são maiores considerando a genealogia de sua
coleção e as restrições de espaço que a acometem.
O investimento na ubiquidade – de estar em diver-
sos lugares – denotam que conceitualmente o pro-
jeto institucional está bem ancorado. No entanto,
a crise financeira atual do país freou temporaria-
mente esse processo de expansão.
Esse texto focou no colecionismo e, assim sen-
do, não tratou de outras questões do museu de
arte na atualidade. Para finalizar, se faz necessário
salientar que há fatores que limitam a potência da
virada museológica em São Paulo. Entre eles desta-
ca-se o restrito número de curadores e gestores
que orientam as escolhas das instituições nos últi-
mos 20 anos. Novos quadros, seja do Brasil como
do exterior são muito bem vindos, bem como o
questionamento dos princípios e referências que
norteiam a curadoria em vigência nas instituições
da arte e da cultura no Brasil. Por fim, a composi-
ção dos conselhos deliberativos e consultivos de
nossos principais equipamentos culturais deve le-
var em conta o estranhamento, a pluralidade, a
alteridade, a diversidade e o dissenso que confor-
mam uma sociedade tão complexa como a nossa.

]
É PROFESSOR TITULAR DA USP

Como os museus
de São Paulo
passaram a
enfatizar, nos
últimos anos,
uma arte global,
como ruptura
em relação às
suas vocações
no século 20

UMA VIRADA NOS


MUSEUS


Aliás, Visuais


Cartão postal.
Construção da atual
sede do Masp, na
década de 1950


ACERVO ESTADÃO

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 22 DE MARÇO DE 2020 Aliás E3

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