O Estado de São Paulo (2020-03-23)

(Antfer) #1
Baronesa
(Brasil/2017). Direção e roteiro de
Juliana Antunes, fotografia de Fer-
nanda de Sena, com Andreia Pereira
de Souza, Leidiane Ferreira, Felipe
Rangel dos Santos, Gabriela Souza.

Um Espião e Meio
/ Central Intelligence
(Estados Unidos/2016).
Dir. de Rawson Marshall Thur-
ber, com Dwayne Johnson,
Kevin Hart, Danielle Nicolet,
Aaron Paul, Amy Ryan

João Marcos Coelho
ESPECIAL PARA O ESTADO


Sabe-se que o genial escritor
russo Leon Tolstoi (1828-1910)
estudou piano. Chegou a com-
por uma valsinha. Na década
de 1880, combateu encarniça-
damente a instituição do casa-
mento e pregou a abstinência
sexual. Foi com essas ideias na
cabeça que ele assistiu numa
tarde, em sua casa, a uma exe-
cução da Sonata a Kreutzer , a
nona das dez sonatas para violi-
no e piano de Beethoven. Ou-
viu-a em lágrimas e no Presto
final levantou-se e foi até a ja-
nela, soluçando. Viu nela o
símbolo da corrupção moral
no casamento, e transfor-
mou-a no núcleo central de
sua novela famosa publicada
em 1889, que conta o final
trágico de um triângulo amo-
roso entre o jovem violinista
Trukachevsky e Lise, a esposa
pianista de Pozdnichev. Este
os flagra tocando sensualmen-


te... o fogoso, o incendiário
Presto que fez Tolstoi chorar.
Embora costume frequen-
tar mais assiduamente do que
se pensa o clima da música ca-
merística, o erotismo em geral
fica meio submerso. Até por-
que a atmosfera engessada da
vida artística no universo da
música de concerto busca re-
calcá-lo mesmo em obras que
o traduzem de
modo explícito


  • ainda que sem
    palavras. Quan-
    to à Kreutzer , de
    Beethoven, bas-
    ta ouvir a leitura
    vulcânica da sonata por Mar-
    tha Argerich e Gidon Kremer
    para se convencer de que Tols-
    toi captou bem a mensagem.
    As gerações mais recentes
    de músicos têm recorrido à
    tática do erotismo escancara-
    do, para alcançar um lugar no
    disputadíssimo sol dos eleitos
    pelas mídias de todas as natu-
    rezas. Em um tempo em que


até quem não tem nada a dizer
sobre si mesmo se sente com
direito a expor suas vísceras
nos palcos digitais, isso soa
até normal.
É justo que os músicos tam-
bém lancem mão desse recur-
so de marketing para se pro-
mover. Justíssimo quando to-
pamos com alguém de real ta-
lento. O truque parece novo,
mas é mais que
centenário. As
primeiras déca-
das do século 19
assistiram ao
triunfo do piano
como instru-
mento hegemônico da vida
musical. Como ele podia, sozi-
nho, substituir uma orquestra
em casa, virou rei nas noites
pós-jantar das famílias de clas-
se média europeias.
Tocar a quatro mãos virou
coqueluche, porque propicia-
va um inédito contato físico
mais íntimo, digamos, entre
aluna e professor. Críticos e

moralistas chegaram a acusar
o piano pelo colapso da música
de câmara, chamando-o de
“usurpador tirânico”, porque
“encorajava a imoralidade ao
permitir que os casais se sen-
tassem muito perto enquanto
tocavam a quatro mãos”.
Outro tanto se especulou,
lançando-se suspeitas moralis-
tas de que algo mais acontecia
entre a pianista e seu partner
no rico repertório das sonatas.
Franz Liszt, de vida amorosa
amoral para os padrões da épo-
ca, encarnava o super-herói fru-
to do desejo das moçoilas que
se estapeavam por um lugar na
primeira fila de seus recitais.
Temos hoje não um super-
herói, mas uma super-heroína
no reino da música de concer-
to (tal como a vitaminada e ero-
tizada Mulher-Maravilha no
mundo masculino dos super-
heróis das telonas e telinhas).
A pianista chinesa Yuja
Wang, que completou 33 anos
em fevereiro passado, forma-
da no Conservatório Central
de Pequim, com curso no céle-
bre Curtis Institute da Filadél-
fia, nos Estados Unidos, vem
“causando” há bons 15 anos.
De um lado, é uma pianista ex-
traordinária, que leva no san-
gue o DNA de uma Martha Ar-
gerich, ainda hoje, aos 78 anos,
um furacão diante das 88 te-
clas do piano, que se celebri-
zou interpretando o terceiro
concerto de Prokofiev, um dos
mais difíceis do repertório.
Yuja tem um corpo escultu-
ral que explora por meio de ves-
tidos tão ousados que já foi cha-
mada por um horrorizado críti-
co norte-americano mais con-
servador “stripper”. Fendas
inacreditáveis provocam a ima-

ginação dos homens e a inveja
contida das mulheres. Uns a
desejam, outras a desqualifi-
cam por causa do que veste.
Ora, o que interessa é sua per-
formance ao piano. E ela já dis-
se mais de uma vez em entrevis-
tas que se sente como uma
atriz no palco. Isto é, encarna
uma “persona”. Só um exem-
plo: mais de 1,6 milhão de likes
no YouTube saúdam sua per-
formance do primeiro de
Tchaikovski no Carnegie Hall
em 2017.
Ainda bem que seu
erotismo explícito se
combina com elevada
qualidade artística. Em
sua gravação mais re-
cente, lançada no final
de fevereiro pela War-
ner Classics no merca-
do internacional em
versão física, mp3 e nas
plataformas de strea-
ming, ela inverte o “teo-
rema-Kreutzer”. Aqui,
não é o violinista que se-
duz a pianista, mas ela
é quem subjuga seu par-
ceiro, o violoncelista
francês Gautier Capu-
çon. Aos 38 anos, boa-
pinta (como se dizia antanho),
faz o par perfeito com ela. Mas
musicalmente sucumbe a seus
encantos musicais.
Chopin domina o álbum. De-
le, o duo interpreta a Introdu-
ção e Polonaise Brilhante em
dó maior, seu opus 3, que escre-
veu para uma aluna em 1829,
antes de se fixar em Paris. Por
trás das longas melodias do vio-
loncelo, o piano borda arabes-
cos deliciosos – e comanda a
música, porque, afinal, era um
presente do apaixonado Cho-
pin à princesa Wanda, então

com 17 anos (ele com 19). A So-
nata em sol menor opus 65 foi
tocada em 1847 em sua última
aparição pública e derradeira
composição publicada, em


  1. Ouça com atenção o mo-
    vimento inicial, um Allegro mo-
    derato de 15 minutos, maior
    que os três movimentos restan-
    tes. Talvez em Chopin, curiosa-
    mente, seja o único momento
    em que Yuja prefere integrar-
    se em vez de dominar o cello.
    O ponto mais alto desse ál-
    bum precioso é a leitu-
    ra fogosa da sonata
    em lá maior original
    para violino e piano
    de César Franck, tam-
    bém bastante execu-
    tada e gravada nessa
    versão. Em seus 29 mi-
    nutos e quatro movi-
    mentos, a forma cícli-
    ca, em que os temas
    de cada movimento
    são recuperados e
    transformados nos se-
    guintes, é o leito ideal
    para o domínio avassa-
    lador de Yuja. Ela em-
    purra Capuçon para
    contrastes mais extre-
    mados do que os habi-
    tuais de dinâmica, acentua tea-
    tralmente o fraseado e as “con-
    versas” entre eles. Ouça o lindo
    “Recitativo Fantasia. Ben mo-
    derato”, uma espécie de trégua
    nas trincheiras de piano e cello
    para uma “honeymoon” inespe-
    rada (e bela, muito bela).
    O fecho dessa brilhante
    aventura erotizante só pode-
    ria ser mesmo Le Grand Tan-
    to
    , de Astor Piazzolla. Aqui ex-
    plodem de vez os hormônios,
    como diria um psicanalista.
    Não se engane com a capa
    bem-comportada.


O longa, escrito, dirigido e foto-
grafado por mulheres, não dá
voz a elas porque não se trata de
uma concessão. O dia a dia de
duas amigas da periferia de Belo
Horizonte. Uma junta dinheiro
para construir casa em outra
vizinhança; a outra está com o
marido na cadeia. Empodera-
mento, periferia, um filmaço.

C.BRASIL, 18h45. REP., COL., 73 MIN.

Luiz Carlos Merten

Numa cena movimentada,
Dwyane Johnson, queren-
do elogiar Kevin Hart, diz
que ele parece “um Will
Smith negro”. Mas Will
Smith é negro! É o tipo da
piada nonsense de que o
filme lança mão. O ex-The
Rock, que sofria bullying
na escola e virou agente da
CIA, recorre ao garoto que
era popular e virou um
adulto frustrado para aju-
dá-lo a resolver um caso de
espionagem.
GLOBO, 23h10. REP., COL.,116 MIN.

Trágica Emboscada
/ The Savage
(Estados Unidos/1952). Dir. de Geor-
ge Marshall, com Charlton Heston,
Susan Morrow, Joan Taylor, Peter
Hansen, Richard Roben.

Na série de westerns que o ca-
nal apresenta nesta segunda, e
que inclui o clássico Duelo de
Titãs , de John Sturges, às
23h45, vale rever o mais modes-
to, mas eficiente, trabalho do
bom Marshall. Charlton Hes-
ton faz mestiço criado pelos
índios, que tenta evitar a guer-
ra com os brancos.

TC CULT, 22h. REPRISE, COL., 95 MIN.

DESTAQUE

Música erudita. Pianista chinesa e o violoncelista francês Gautier


Capuçon acabam de lançar o precioso álbum ‘Franck, Chopin’


Luiz Carlos Merten


E


m tempos de confina-
mento social provoca-
do pela covid 19, quem
viu a novela
Amor de Mãe , ao
longo da semana, deve ter se-
guido aterrado o processo de
transformação da persona-
gem Thelma, na novela de Ma-
nuela Dias. Ao descobrir que
seu filho, na verdade, é o filho
procurado pela amiga Lurdes,
Thelma virou um monstro,
chegando ao assassinato.
O capítulo de sábado fe-
chou a primeira fase da nove-
la, que a Globo, provisoria-
mente, deixa de gravar. Adria-
na Esteves, que faz o papel, é
boa, mas, como a lendária Bet-
te Davis, é melhor ainda como
malvada. Basta (re)ver algu-
ma cena dela na novela icôni-
ca,
Avenida Brasil , no Vale a
Pena Ver de Novo
, à tarde.
Para substituir
Amor de
Mãe
, a Globo apresenta, a par-
tir desta segunda, 23, a versão
compacta de
Fina Estampa**.
Com a novela de Aguinaldo
Silva, voltam Pereirão, Tere-
sa Cristina e... Crô! No ar en-
tre 22 de agosto de 2011 e 23
de março de 2012 – sim, o últi-
mo capítulo foi ao ar exata-**


mente há oito anos –, Fina Es-
tampa talvez possa ser vista
como premonitória de um
tema que se impôs ao longo
da década – o empoderamen-
to (das mulheres). Os anos
2010 foram marcados por dis-
putas de narrativas. O autor
já se destacara criando mulhe-
res fortes – a Tieta de Betty
Faria, com base em Jorge
Amado. Mas a Griselda de Lí-
lia Cabral possuía caracte-
rísticas peculiares.
Conhecida como Pereirão,

trabalha como faz-tudo para
garantir o sustento dos três
filhos. Já a Teresa Cristina
de Christiane Torloni vai na
contramão. A socialite que
acredita ter a vida perfeita
vai cair do cavalo, como se
diz, no choque inevitável que
se estabelecerá com Perei-
rão. Teresa Cristina vive a
vida de aparência para a qual
serão atraídos os filhos de
Pereirão, mas mesmo quem
não viu a novela pode ficar
tranquilo – Griselda dará a

volta por cima e, no desfe-
cho... Ops! Vamos com cal-
ma, capítulo por capítulo,
desfrutando a sinuosa trama
que Aguinaldo Silva criou.
Outro personagem seduziu
o público. Seduziu tanto que
Crô, o mordomo gay de Mar-
celo Serrado, ganhou vida pró-
pria e saltou da ficção de Agui-
naldo Silva para os filmes rea-
lizados por Bruno Barreto e
Cininha de Paula, em 2013 e

18. O próprio Aguinaldo pro-
pôs, para Barreto, um Cro-
doalvo Valério subitamente
rico, ao herdar a fortuna de
sua rainha do Nilo.

O problema é que Crô tem
alma de servidor(a). Adora
ser tiranizado. Com graça,
Barreto exercita seu amor pe-
la comédia italiana. Na versão
de Cininha “Zorra Total” de
Paula – Aguinaldo colabora –,

Crô em Família , um bando de
aproveitadores invade a man-
são para se dar bem. A crítica
caiu matando, mas é impossí-
vel não rir com as atribula-
ções de Crodoalvo tentando
ensinar a etiqueta a um bando
de sem-noções. A afirmação
LGBT também marcou a déca-
da. No limite, é um filme so-
bre afeto.


Filmes na TV

FRANCK,
CHOPIN
Gautier
Capuçon e
Yuja Wang
Warner Classics
(CD, R$ 35. iTu-
nes, R$ 19,90)

JOÃO MIGUEL/TV GLOBO – 19/8/2011

A volta de ‘Fina Estampa’, na folga da quarentena


Humor. Marcelo Serrado, Christiane Torloni e Dalton Vigh

NEW LINE CINEMA

MAIS DE 1,6 MILHÃO
DE LIKES NO YOUTUBE
POR PERFORMANCE
EM NOVA YORK, 2017

Yuja Wang, uma


super-heroína no


reino de concertos


HIROYUKI ITO/NY TIMES

Wang.
Pianista que
leva no
sangue o
DNA de uma
Martha
Argerich
combina
sensualidade
e ousadia
com elevada
qualidade
artística

%HermesFileInfo:C-5:20200323:
O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 23 DE MARÇO DE 2020 Caderno 2 C5

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