O Estado de São Paulo (2020-03-26)

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H10 Especial QUINTA-FEIRA, 26 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


DA MATA...


ENQUANTO ISSO,


Caderno 2


Ney Matogrosso, 78 anos, foge para a natureza de sua fazenda


ao lado da mãe, de 97, e de toda a vida que não está ameaçada


NO MEIO


A


inacreditável fala do presi-


dente na terça-feira acabou


com a profissão de intérpre-


te de panelaços, criada na era Bol-


sonaro & Filhos. Um intérprete de


panelaços era quem distinguia um


panelaço de outro, já que os panela-


ços tanto podiam ser a favor ou


contra o governo, e um panelaço


no Leblon não era igual a um pane-


laço em outro lugar.


Até pouco tempo, era fácil interpre-


tar panelaços, ouvidos sempre em zo-


nas de alto poder aquisitivo ou alta


classe média. Não havia dúvida sobre


quem estava nas janelas e nas saca-


das dos edifícios, batendo em frigidei-


ras, travessas e surdos improvisados,


em apoio ao governo que tinha ajuda-


do a eleger com seu barulho. Hoje, há


panelaços feitos nos mesmos edifí-


cios, supõe-se que pelas mesmas pes-


soas, mas acompanhados de gritos


de “Fora, Bolsonaro!”, o que só prova


como são volúveis nossas elites, co-


mo é difícil fazer sociologia a curto


prazo no Brasil e, principalmente, a


falta que faz um bom intérprete de


panelas para nos orientar.


Nenhuma novidade no fato de um


governo perder apoio na prática de


governar. Promessas de campanha


são como juras de amor, servem para


seduzir, não necessariamente para


durar. Mas, no caso da desilusão com


Bolsonaro & Filhos, a decepção foi


maior porque a expectativa dos seus


57 milhões de eleitores – espantosa,


conhecendo-se a biografia e a perso-


nalidade do candidato – era maior.


Digam o que disserem do Bolsonaro


& Filhos, eles nunca esconderam o


que eram, ou chegaram ao poder dis-


farçados de outra coisa. O que os 57


milhões elegeram foi isso aí mesmo.


Quanto à mudança dos panela-


ços de a favor do governo para con-


tra o governo, a causa, entre ou-


tras, é o desempenho de Bolsona-


ro & Filhos na guerra contra a pes-


te que nos assola, como ficou evi-


dente na fala inacreditável da ter-


ça-feira. Não sei como estão sen-


do interpretados os panelaços do


Leblon, mas, se são sinais de insa-


tisfação, também são sinais de


conscientização, e nos servem.


Portanto, não pergunte por quem


soam as panelas do Leblon, elas


soam por você.


Verissimo


LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE
ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Julio Maria


Ney Matogrosso não está abala-


do, como não esteve em nenhu-


ma fase atravessada pelos seus


78 anos. Mentira. Houve um


momento, lá pelo início dos


anos 1980, em que a culpa ba-


teu. Afinal, por que ele não era


feliz se tinha tudo o que todos


queriam ter e não podiam? Era


certo ter dinheiro? Era certo


comprar carro? E a pobreza do


mundo? A máquina que ele sem-


pre repudiava, a do sucesso, ha-


via, enfim, o devorado? Mas aí,


Ney foi para a terapia e logo se


reencontrou depois de apa-


nhar muito com o método Fis-


cher-Hoffman, uma terapia de


alto impacto emocional e físico


que, de fato, devolveu a ele o


equilíbrio e a paz.


Quando a aids chegou nos pri-


meiros anos da década de 1980,


noticiada pelos jornais como a


“peste gay”, um torpedo foi lan-


çado no meio da pista disco Dan-


cin’ Days dos anos 1970 e de to-


da a liberação sexual e compor-


tamental pregada pelos hippies


desde Woodstock, em 1968. A


direita religiosa dizia ser um cas-


tigo dos céus a banir todo o peca-


do disseminado por pessoas


que insistiam em amar outras


pessoas do mesmo sexo.


Ainda quando não se sabia ao


certo por onde vinha o vírus,


com médicos se paramentando


com roupas de astronauta para


atender aos pacientes, as pes-


soas começaram a tombar. Ami-


gos, amigas e namorados, ato-


res, cantores e médicos, muita


gente cheia de vida e bronzeada


começou a definhar. Em uma


semana, Ney foi ao cemitério


três vezes enterrar três amigos.


Certo de que estava infecta-


do, até porque pessoas com as


quais havia mantido relações


sem proteção estavam, seguiu


para um laboratório com a tran-


quilidade das ovelhas de cativei-


ro. Ao abrir o resultado do exa-


me, leu “negativo”, dobrou o pa-


pel e voltou para casa.


Ney caminha entre mortos e


feridos desde sempre. Antes da


aids eram os militares. “Avisa o


Ney Matogrosso que ele será o


próximo”, ouviu o compositor


Aldir Blanc ao ser levado para


uma das dependências da polí-


cia política no Rio de Janeiro. E,


antes de tudo, era o pai, o pa-


dre, a professora, os amigos,


um apresentador de uma es-


pécie de show de calouros em


um parque de diversões. Antes


que a palavra gay existisse, nos


anos de 1940, Ney não escondia


suas delicadezas nem temia


suas vontades.


Talvez isso explique a tran-


quilidade na fala de Ney – al-


guém que atravessou uma guer-


ra mundial, uma ditadura de 21


anos e uma pandemia de aids –


e seus posts no Instagram com


flores, aves, borboletas, ba-


nhos de rio e coisas de alguém


que poderia parecer habitar um


outro planeta. Quando soube


que o mundo iria começar a vi-


rar de pernas para o ar mais


uma vez, Ney chamou um ami-


go e foi para onde sempre vai


quando não está gravando dis-


cos ou com shows na estrada.


Mesmo caminhando na beira


dos 80 anos, é o que o novo co-


ronavírus parece ter feito com


esta idade, uma beira ainda


mais escorregadia, o palco ain-


da lhe é confortável, tirando a


perna que não sobe até onde su-


bia e a voz que precisa de des-


canso todas as manhãs depois


de shows. O alarme soou e ele


seguiu para a fazenda que tem


desde os anos 1990 em Sam-


paio Correia, distrito de Saqua-


rema, em uma serra que possui


o mesmo nome da fazenda e,


por sinal, coincidência ou desti-


no, seu próprio nome: Mato


Grosso. É na Fazenda Mato


Grosso que Ney passa seus dias


de confinamento forçado, sem


poder voltar para o Rio e que-


brando a série de shows marca-


dos de sua turnê Bloco na Rua.


Não há sacrifício, como a re-


portagem pôde conferir em


uma tarde de 2019, quando este-


ve ali sem o cantor. A Fazenda


Mato Grosso trata-se do lugar


mais próximo de tudo o que ele


tem como ideia de mundo per-


feito, desde os dias de infância


em Campo Grande vividos en-


tre cães e pássaros em uma ma-


ta nos fundos de sua casa. Um


riacho de águas cristalinas, mui-


tos caminhos a se desbravar


por entre as árvores, alguns


cães, uma jacutinga, espécies


de aves que uma vida não catalo-


garia e uma cachoeira. Ele fica


em uma casa maior, com dois


andares, com muita madeira e


bem decorada, mas sem luxo.


A alguns metros dali, descen-


do pela estradinha de terra,


sua mãe, Dona Beíta, 97 anos,


vive como quer, cuidando das


galinhas e dos porcos. Como o


filho, ela não gosta dos dias em


que está no Leblon, onde Ney


vive teoricamente com mais


conforto, em uma cobertura a


poucos metros da praia, com


um macaquinho como único


representante de seu mundo


perfeito.


Os vírus devem ter dificulda-


de se quiserem achar hospedei-


ros que os levem até a Fazenda


Mato Grosso. Eles precisariam


primeiro se instalar em algum


dos produtos que chegam rara-


mente de um armazém próxi-


mo, levados por um funcioná-


rio que os deixam a uma distân-


cia segura, e resistirem às de-


sinfecções cuidadosas de Do-


na Beíta. Depois de passarem


por todos esses estágios, deve-


rão ainda vencer os mecanis-


mos biológicos de defesa que


Ney deve deixar para serem es-


tudados pelos cientistas.


Ney diz não tomar comple-


xos vitamínicos nem fazer tra-


tamentos rejuvenescedores


para chegar bem aos 80, mas


conta que, além de chupar


limões que apanha em pés es-


palhados pela fazenda e de um


revitalizante suco de inhame,


cuida dos pulmões, o destino


das novas pragas, com um chá


de erva de Santa Maria, chama-


do também, em alguns lugares


de Brasil, por mastruz, algo


que a medicina das florestas


designa com fôlego: “Aborti-


va, anti-inflamatória, anti-hel-


míntica, antitumoral, antivi-


ral, antiasmática, antiespas-


módica, antipalúdica, aromáti-


ca, antiulcerosa, antifúngica,


anticancerígena, amebicida,


antigripal, antinevrálgica e an-


ti-hemorroidal”.


No mais, diz Ney, não há mu-


dança de rotina. “Aqui não te-


nho que tomar precaução.” Ele


sai para fotografar pássaros,


plantas e borboletas com seu


celular e, quando a temperatu-


ra permite, se banhar na ca-


choeira que fica a um quilôme-


tro da casa de madeira. Mas não


imagine Ney cantando pela flo-


resta. “Eu não canto, não sou


de cantar. Nem no banheiro.”


As notícias de um mundo des-


conjuntado das pernas têm che-


gado pela TV, que Ney não assis-


te para “manter a sanidade


mental”, mas que a mãe sim, fa-


zendo o trabalho sujo por ele, e


pela internet, instalada dois


dias antes da pandemia chegar


ao Brasil. “Acho que foi uma in-


tuição. Um rapaz veio me ofere-


cer os serviços de uma internet


rural.” Ney diz que, desta vez,


sua ida para a fazenda foi mes-


mo para fugir do novo coronaví-


rus. “Claro, não iria ficar preso


no meu quarto, no Rio. Agora,


eu sei também que é difícil para


muita gente. Traga pra cá al-


guém da cidade grande para ver


se a pessoa não pira de soli-


dão.” Mas não é assim que es-


tão todas as pessoas? Seja em


uma fazenda, seja em uma cida-


de com 12 milhões de habitan-


tes, não estão todos muito mais


solitários do que sempre estive-


ram? “Não. As pessoas estão


tendo de conviver com elas


mesmas. Então, aproveite essa


oportunidade de estar só, de se


conhecer, olhar para dentro de


si.” Ele diz algo que buscou fa-


zer a vida toda, desde a infância


solitária vivida no seu quintal


de Campo Grande e depois,


com todas as drogas e ervas que


consumiu em busca de encon-


trar a si mesmo. “É hora de pen-


sar e repensar como você está


se colocando nesse mundo. As


pessoas passam a vida olhando


para fora. E não pirem, porque


é bom ficar só. Vai ser difícil


para muitos, mas procurem ti-


rar um bom proveito disso. É


bom ficar só.”


l]


Panelaços


NO INSTAGRAM


Paraíso particular. Ney na casa com muita madeira e pouco luxo, em uma serra de Saquarema


Cores. Árvores floridas no outro


lado do Rio, perto da fazenda


Frutos. Uma palmeira baixa,


de folhas grandes e redondas


Antes de desabrochar.


A flor que ele posta sem legenda


ARQUIVO PESSOAL

Dony. “Dormindo depois de


destruir uma almofada”, diz Ney


Coruja buraqueira. Ney


escreve que são dóceis, de longe


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