António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)
e o que significa
- Muito bem
agora que vais morrer, que mais umas semanas apenas, mais uns dias talvez, mais
umas horas e pronto, que o conselho
- Não fales
porque falar cansa não é, já que estamos com a mão na massa aqui entre nós como
será comigo, não quero saber, não me contem, o rim também ou outra coisa qualquer,
a garganta, o joelho, este incômodo aqui
- Não te rales que se não perdeste o apetite não é nada de grave
mas o médico, sério
- Vamos fazer exames
o médico não digo que simpático nem desagradável, digo que com uma ruga mas se
calhar a mesma ruga para todos, se calhar sofre da vesícula ou isso
- Até conhecer o resultado não posso adiantar nada
e um aperto de mão à despedida não enérgico, mole, os olhos poisados em mim que
não entendo o que dizem, um soslaio à minha mulher, um soslaio ao meu filho, a boca
à beira de uma frase e a arrepender-se, a calar-se, cinco dias até o laboratório completar
os testes, mais cinco ou seis à espera do diagnóstico de forma que o apetite a sumir-se
de aflição, beber água todas as manhãs antes de me pesar na balança de modo a
aumentar os números que aparecem naquele quadradinho entre os pés e mesmo assim
menos trezentos gramas e os trezentos gramas assustadores, amanhã em vez de meia
garrafa bebo uma garrafa inteira, não faço chichi antes, guardo o cocó para depois,
guardo os chinelos que apesar de leves sempre ajudam um bocadinho, não tiro as calças
do pijama, continuo com a gilete na mão que embora leve não flutua, o capitão para a
tropa designando as pacaças da cadeira que o Bichezas lhe colocou cá fora
- Quero esta carne salgada
e os olhos dela abertos, úmidos, a mais pequena com uma mosca poisada na íris, tudo
come tudo neste sítio, ao menos nós na aldeia só comemos o porco, trazemos os restos,
inclusive os gritos deles, para Lisboa, a minha mulher a abanar a cabeça desgostosa
- Que horror
continuando o croché, havia alturas, em que me apetecia morrer, o pelotão que
montava a guarda fora do arame voltava sempre antes de amanhecer, começavam a
distinguir-se as árvores e o posto da enfermaria quando uma faixa lilás no horizonte, os
eucaliptos menos negros, as barracas onde os homens dormiam mais nítidas, o
apontador de metralhadora que nunca falava com ninguém, nunca sorria, de joelhos
num pedaço de lona a lubrificar o cano, o médico para o meu pai
- Se alterarmos o tratamento à sua senhora pode ser que resulte nisto da medicina o
que mais há são surpresas
macas com criaturas caladas, doentes numa salita, de cara nas mãos, em bancos
corridos, uma velhota a puxar um tacho e um garfo de um saco de plástico tentando que
uma rapariga ao seu lado aceitasse um cozidito e a rapariga, sempre de pálpebras
descidas, a empurrar-lhe o braço com o cotovelo
- Largue-me