António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1
e o que significa


  • Muito bem
    agora que vais morrer, que mais umas semanas apenas, mais uns dias talvez, mais
    umas horas e pronto, que o conselho

  • Não fales
    porque falar cansa não é, já que estamos com a mão na massa aqui entre nós como
    será comigo, não quero saber, não me contem, o rim também ou outra coisa qualquer,
    a garganta, o joelho, este incômodo aqui

  • Não te rales que se não perdeste o apetite não é nada de grave
    mas o médico, sério

  • Vamos fazer exames
    o médico não digo que simpático nem desagradável, digo que com uma ruga mas se
    calhar a mesma ruga para todos, se calhar sofre da vesícula ou isso

  • Até conhecer o resultado não posso adiantar nada
    e um aperto de mão à despedida não enérgico, mole, os olhos poisados em mim que
    não entendo o que dizem, um soslaio à minha mulher, um soslaio ao meu filho, a boca
    à beira de uma frase e a arrepender-se, a calar-se, cinco dias até o laboratório completar
    os testes, mais cinco ou seis à espera do diagnóstico de forma que o apetite a sumir-se
    de aflição, beber água todas as manhãs antes de me pesar na balança de modo a
    aumentar os números que aparecem naquele quadradinho entre os pés e mesmo assim
    menos trezentos gramas e os trezentos gramas assustadores, amanhã em vez de meia
    garrafa bebo uma garrafa inteira, não faço chichi antes, guardo o cocó para depois,
    guardo os chinelos que apesar de leves sempre ajudam um bocadinho, não tiro as calças
    do pijama, continuo com a gilete na mão que embora leve não flutua, o capitão para a
    tropa designando as pacaças da cadeira que o Bichezas lhe colocou cá fora

  • Quero esta carne salgada
    e os olhos dela abertos, úmidos, a mais pequena com uma mosca poisada na íris, tudo
    come tudo neste sítio, ao menos nós na aldeia só comemos o porco, trazemos os restos,
    inclusive os gritos deles, para Lisboa, a minha mulher a abanar a cabeça desgostosa

  • Que horror
    continuando o croché, havia alturas, em que me apetecia morrer, o pelotão que
    montava a guarda fora do arame voltava sempre antes de amanhecer, começavam a
    distinguir-se as árvores e o posto da enfermaria quando uma faixa lilás no horizonte, os
    eucaliptos menos negros, as barracas onde os homens dormiam mais nítidas, o
    apontador de metralhadora que nunca falava com ninguém, nunca sorria, de joelhos
    num pedaço de lona a lubrificar o cano, o médico para o meu pai

  • Se alterarmos o tratamento à sua senhora pode ser que resulte nisto da medicina o
    que mais há são surpresas
    macas com criaturas caladas, doentes numa salita, de cara nas mãos, em bancos
    corridos, uma velhota a puxar um tacho e um garfo de um saco de plástico tentando que
    uma rapariga ao seu lado aceitasse um cozidito e a rapariga, sempre de pálpebras
    descidas, a empurrar-lhe o braço com o cotovelo

  • Largue-me

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