comigo sem topar por que motivo se interessava por mim e impedira que me
fizessem dano, trouxe-me para Portugal na esperança que a minha mãe o ajudasse a ser
seu filho também mas agora as pedras do rim, mas agora a doença, mas agora a
vizinhança da morte impediam-na, a camisa de dormir com rendas não existia já ou
existia num fundo de gaveta que ninguém encontrava mas os braços dela longe dos seus
ombros, mas o médico a mostrar-lhe mais manchas brancas no pulmão, nos ossos, no
fígado, mas
- Tens de viver sem mim não consigo
com a frase substituída pelo que imaginava um sorriso sem ser capaz de um sorriso,
o meu pai que não gostava de mim, me usava na esperança de que gostasse dele, o meu
pai ao mesmo tempo ele e o porco que comia, comia, o porco que matava amanhã como
matou em África as pessoas e as cabras - Queima queima
como me contou que assistiu à polícia política a matar prisioneiros, como se calhar
ajudou a matá-los, como amanhã vai cravar a faca e escutar os gritos, os gemidos, os
pingos lentos das lágrimas, como abandonará a minha mãe sozinha no hospital no
momento de morrer, como Sua Excelência receosa dele se o sentia por perto - Não
como há de pretender não ouvir a minha mãe a chamar, saindo para o cemitério a
maldizer os defuntos, como lhe agrada que Sua Excelência me despreze - O preto
como quando a mulher das mãos cortadas com quem eu morava lhe pediu - Chindele Chindele
e simulou que não a escutava, olhou para mim e tornou a olhar para baixo, sentado
nas costas da mulher como se não me visse, levantou a catana que estava no quimbo
onde morávamos, recordo-me do cheiro da liamba, do cheiro da terra, de galinhas só
pescoço a espernearem no chão, de cabras que cegaram com arames, de uma velha de
boca aberta sem som, de Sua Excelência para a amiga - Filha
enquanto lhe beijava o ombro, de um tê seis a jogar esfoliante numa lavra, da nuca
magríssima da minha mãe a lavar a loiça do pequeno-almoço no alguidar, de mim
colocado pelo meu pai num unimogue, quase sem roupa, descalço, de Sua Excelência a
meu respeito - Tão sujo
impedindo-me de me aproximar dela, eu sujo, a tropa suja, o meu pai sujo, poeira,
motores, estrondos, tábuas que se quebravam, os leprosos junto ao rio a grunhirem,
dois ou três pássaros de pescoço pelado à espera, a minha mãe sentada de novo,
exausta, a secar-se num panito, o médico para ela - Os comprimidos não lhe tiraram as dores?
a pesá-la na balança satisfeito com o resultado, mostrando-lhe o gráfico para o qual
a minha mãe nem olhou - Trinta e seis quilos mais coisa menos coisa o mesmo peso
quase contente, quase efusivo, quase a conseguir esconder as notas erradas da voz,
a minha mãe para a professora da escola