António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Mandei os soldados fazerem uma cama de bordão de palmeira para o miúdo, que
pus na barraca dos oficiais ao lado da minha entre os cartazes de senhoras nuas que
sorriam todo o tempo apaixonadas por nós, mas sabia-o a noite inteira sentado, imóvel,
com um pedaço de mandioca apertado contra si, a olhar-me no escuro, impassível como
durante o ataque quando entramos de repente, a dar fogo, na aldeia, minutos antes da
manhã, no lado oposto ao rio, com o helicanhão dos sul africanos a seguir e o apontador
que não falava a ninguém, nem com os camaradas dele, passeava no arame de mãos
nos bolsos e uma espécie de panamá na cabeça, quase encostado ao piloto, quase de
pernas de fora, escolhendo os alvos um a um, este homem, aquele e o miúdo sem o
evitar, quieto, de cabelo descolorido pela comida que não tinha e a barriga inchada de
fome, de pipo do umbigo saído, parado entre dois quimbos sem se preocupar com as
chamas, os balidos, os gritos, a assistir à mãe a arrastar-se de gatas para ele, sacudida
pelas balas, sem conseguir alcançá-lo, ao pai que tentava defender-se com um
canhangulo quebrado, a um velho meio cego, de metade esquerda da cara mais
comprida que a direita e as gengivas enormes, que lhe alcançou o tornozelo, adormeceu
de seguida de palma aberta, acabou por esquecê-lo e ainda lá deve estar se as hienas o
pouparam e os mabecos mais interessados em rasgarem as cabras, o miúdo que até
hoje, já homem, não cessou de fitar-me sem curiosidade nem ódio nem buscando
entender, o meu avô para o meu pai, a estender-lhe a ponta do garfo por cima das
perdizes



  • Toma cuidado com os chumbos da caçadeira que o dentista só volta cá em abril
    o miúdo que até hoje, já homem, não cessou de fitar-me a sentir não sei o quê, a
    pensar não sei em quê, sem me tocar nem abraçar nunca que os pretos não tocam nem
    abraçam, o meu pai a apanhar com cuidado um chumbo redondinho da língua, batem
    palmas quando respeitam

  • Euá
    não reparam quando desprezam, a minha mulher para mim na sala, a espiar a porta
    ela que sempre foi cuidadosa

  • Achas que o pequeno ganhou alguma amizade por nós?
    e era capaz de ter ganho, não sei, porque se adoecia nos apertava o pulso ao
    inclinarmo-nos para ele, tão cansado no lençol, tão sozinho, tão longe, parecia que com
    receio de que nos fôssemos embora e a tropa voltasse, tantas orelhas cortadas, tantas
    galinhas a cambalearem sem cabeça, tantas mãos que não existem, tantos ratos
    esfomeados a subirem do rio, será que os pretos têm coisas parecidas com as nossas,
    será por exemplo que se alegram, que sofrem, às vezes cumprimentavam-nos no
    quimbo à volta do arame

  • Moio
    a sorrir mas tratar-se-ia de um sorriso meu Deus, tratar-se-ia por acaso de um sorriso,
    a minha mulher ao princípio se lhe fazia uma festa, estudava logo os dedos a verificar se
    manchados, a primeira vez que experimentou dar-lhe um beijo na testa demorou-se no
    espelho a verificar se os lábios iguais, pareciam-lhe de fato iguais e no entanto ia jurar

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