António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

santa num nicho com uma jarrita de vidro e um primo que não falava, não comia
sozinho, não entendia ordens e dormia com a madrinha, enorme, obediente, calado, a
minha mulher para, está um dia de vvvvvvvento e eu gosto do vvvvvvvvvento, mim



  • Não seria melhor terem-no deixado em África?
    o miúdo no chão, não numa cadeira, a comer com os dedos, levava-o para a mata
    comigo com medo que os soldados, com medo de não o encontrar quando voltasse

  • O garoto?
    e silêncio, um dos cabos condutores sem olhar para quem quer que fosse

  • Deve ter saído sem que a gente notasse
    e claro que não saiu sem que a gente notasse, a barraca dos oficiais vazia, não
    queremos pretos aqui, dormem o nosso sono, comem a nossa comida, detestam-nos,
    mais cedo ou mais tarde, é uma questão de tempo, vai vingar o pai, vai vingar a mãe,
    traz os turras com ele e aponta-nos um a um, conhece o sítio dos morteiros, conhece o
    paiol, mete uma granada lá dentro, a minha mulher já não

  • Amor
    para mim, onde isso vai o amor, como o tempo desbota tudo meu Deus, mas para ele

  • Filho
    e as pessoas na rua a troçarem-me

  • Filho?
    e depois já desenha as letras, já fala no vvvvvvvvvento, começa a engordar, a crescer,
    a ter opiniões, a desobedecer-nos, o doutor do hospital

  • Tem medo do seu filho você?
    e sei lá se não foi ele quem pôs as pedras no rim da minha mulher e acabará comigo
    depois, o comandante dos helicópteros sul africanos para mim no caso de te
    preocupares morres, no caso de não te preocupares morres portanto para quê
    preocupares-te e uma espécie de sorriso a seguir, se me perguntarem se gosto ou não
    do miúdo não consigo responder, gosto, não gosto, gosto, não sei para quê preocupares-
    te, o apontador

  • Boa noite
    e depois um salto do corpo todo no colchão, embora só uma pequena parte no teto,
    o resto tranquilo, as canelas, as botas, a pele ruiva das pernas enquanto o porco de
    amanhã continua a comer, porque não, no caso de se preocupar morria, no caso de não
    se preocupar morria e portanto porquê não comer, os olhos dele vermelhos, os olhos
    dele tão vermelhos, as árvores sob o helicóptero curvadas, cheias de um vento só delas,
    às vezes uma bazuca derrubava um tronco e uma mulher a estender um bebé para nós
    antes de cair com ele, tirando os estrondos barulho algum, uma velha amparada a um
    pau que demorava a ajoelhar-se, isto é ajoelhou devagar e ficou assim até sairmos da
    aldeia, murmurando sozinha não palavras claro, esses resmungos sem nexo dos pretos
    porque, como insistia o sargento, não são pessoas meu alferes, convença-se do que lhe
    digo nunca foram pessoas, de repente um javali atravessou os quimbos a correr e o
    apontador para ele

  • Boa noite
    também, o porco de amanhã a comer e o comandante dos sul africanos bebendo,
    bebendo, não uísque, não vinho, não cerveja, marufo como os pretos, marufo, marufo

Free download pdf