barriga ao léu, se a conhecesse agora não lhe pedia licença para acompanhá-la apesar
da minha risca no cabelo mais abaixo e de uma amostra de papada, não me venham
mentir que estou igual, não estou, basta olhar o cinto dois buracos mais largo, aproximo-
me da morte através de sutilezas assim, sinais nas costas da mão, pregas nas pálpebras,
um dente que perdeu o brilho, a falta de corrimão nas escadas em que não reparávamos
dantes, o peso dos sapatos a engrossar e portanto subir dois degraus de cada vez
impossível, mesmo um sabe Deus, a partir do terceiro começamos logo a contá-los, a
partir do sexto ou sétimo o pretexto de que não sei se esqueci as chaves em casa a fim
de vasculhar os bolsos e dar tempo ao coração de abrandar um bocadinho, menos forte
nas têmporas, menos apressado no estômago porque com os anos o pobre vai
descendo, enreda-se nas tripas, fica a bater lá em baixo, deviam existir suspensórios que
levantassem a alma, devia haver um marcha lento e à vontade que desse esperança à
vida, sinto nos vossos semblantes a alegria de durarem mais um mês ou dois, em casa,
de pantufas, atentos às misérias do organismo, já nenhum cotovelo à minha roda,
nenhum beijo na orelha, os pelos enormes no nariz dento do espelho que aumenta e a
tesoura pequenina que não acerta com eles, como saltar de um helicóptero, como
invadir um quimbo, como atravessar um rio e se calhar tiros, se calhar granadas, se
calhar turras na margem à espera, se calhar crocodilos a deslizarem de si mesmos para
a água, se calhar leprosos ao sol na areia, sem mãos também, sem orelhas também,
equilibrados sobre os próprios cotos a jogarem-nos pedaços de terra ou a fugirem de
nós, a minha mulher, grávida da minha filha, a caminhar sem elegância alguma nas
canelas inchadas e a adormecer pelos cantos, de cabelo às três pancadas, sem pintura,
com um roupão antigo que desencantou não sei onde e a lembrança dos cartazes das
mulheres de Angola percebia-se que com pena de mim, plantava-se no sofá a observar
a parede, acomodada sobre os trambolhos dos pés até que uma coisa peluda, uma filha
em que não me apetece tocar, metida numa alcofa a buzinar a noite toda como os
morcegos em Angola de mangueira em mangueira, os tê seis vinham do norte
bombardear com napalm as pessoas nos quimbos e a roupa a arder, as feições, os
gestos, um piloto não quis sair do aparelho depois de aterrar
- Os mortos vão matar-me amigos
trouxeram-no lá de cima enquanto ele insistia - Vão matar-me
a minha filha tão feia, ainda hoje feia, desde criança que me evita e no entanto todos
os anos presente para a matança do porco, a minha mãe - O que se passa com o teu pai?
e silêncio, é evidente, ela a escapar-se para o cemitério ou a serra sem medo dos
ginetos, dos javalis, dos cães sem dono à cata de galinhas do mato, no inverno rondavam
as capoeiras porque de manhã pegadas na geada, a mula de um primo do meu pai num
talude, só ossos, quase sem dente algum nas mandíbulas enormes, havia ocasiões em
que se lhe escutava o trote lá fora, alferes sacudidos pelo paludismo a vomitarem no
chão aquele suor podre dos doentes, o médico injetou na enfermaria o piloto que
gritava - Vou arder vou arder