de ossos, restos até que a faca do meu pai no seu pescoço, até que o meu irmão e
descansa que não morre, porque as pedras cada vez menos pesadas, menos densas,
para ser franca mais leves do que a água até, o médico primeiro incrédulo, depois a
verificar melhor, depois a chamar os colegas
- Já viram isto?
os colegas - Não pode ser
a experimentarem mais radiografias e a seguir a darem-lhe razão, exatamente estas
palavras - Temos que dar-lhe razão
enquanto o braço da minha mãe à roda do pescoço do meu pai e ela a puxá-lo para
si - Amor
ela que durante tantos anos calada novamente - Amor
ela jovem, tímida, de camisa de dormir com rendas, calçando umas sandálias velhas
se a meio da noite eu começava a chorar no meu quarto, acordada por um pedido aflito
do meu pai - Não me deixes sair não me deixes sair
enquanto a cama protestava, coitada, num gemido de pau, isto em Lisboa, às escuras,
com a buzina de uma ambulância ao longe, sempre com gente, vinda do café próximo,
às gargalhadas na rua, e passos, e assobios, e pontapés numa lata, a minha mãe - O que foi filha?
com o relento da manga do pijama do pai ainda nas suas costas e as pedras, mais
leves que a água, separadas umas das outras, para aqui e para ali, a minha mãe a cheirar
ao mesmo tempo a mulher e a, não pares de comer porco, por favor não pares de comer,
a minha mãe a cheirar ao mesmo tempo a mulher e a homem, que estranho, a pele de
homem, a perfume de homem, a esse odor um pouco a bicho e um pouco a cerveja
deles tão diferente do nosso, o cheiro a timidez e a medo de quando se aproximam, o
receio de deixarem de ser ao perderem-se na gente, vontade de nos chamarem - Mãe
e às vezes chamam de fato, até quando nos insultam há sempre um - Mãe
escondido, até quando nos batem há sempre um - Mãe
que suplica fique comigo, pegue-me ao colo, embale-me dentro de si outra vez, a
minha mãe - O que foi filha?
a sentar-me na cama - O que foi filha?
quase a chorar também, chore comigo senhora, porque não choramos as duas,
porque não sentirmo-nos sozinhas as duas, porque não ficarmos uma com a outra
sempre, eu para o médico não a perguntar-lhe, a afirmar - A minha mãe não morre