António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

com manchas quase negras ao léu, oxalá repares no botão e a tua mãe o prenda como
deve ser, de cesto de costura puxado para debaixo do candeeiro numa atenção cheia de
rugas que ao cortar a linha com os dentes ganhou uma prega de aviso



  • Agora vê-me lá isso
    devolvendo o casaco num gesto lento, solene, enquanto

  • Amanhã à mesma hora
    uma aflição para mim porque não me recordava ao certo da hora, seis, seis e um
    quarto, seis e meia, conforme não me recordava do ponto exato onde nos encontramos,
    perto de uma esplanada junto à montra de uma florista, no meio da rua ao acaso, vai-
    se muito bem pelo passeio, a pensar sei lá em quê e nisto pumba, em sentido contrário
    o amor da nossa vida e ficamos especados a perguntar

  • Será esta?
    absolutamente tantãs e não é exagerada a expressão, não pares de comer porco,
    sobretudo não pares de comer, come a surpresa, o amor da nossa vida descoberto não
    num baile, não num batizado, não no almoço de aniversário do emprego, com emblemas
    de prata da empresa para os que trabalham há vinte e cinco anos e um estojo com uma
    caneta e uma lapiseira de tartaruga para o senhor Borges, porteiro desde o início e
    amigo de infância do fundador, sogro do atual Presidente que apesar de reformado
    todos os dias nos visita, já tontinho, chatíssimo, a queixar-se do genro

  • Só lhe falta bater-me
    o amor da nossa vida de súbito no passeio a caminhar para nós sem reparar na gente,
    a darmos um pelo outro e a nossa esperança, na qual já não tínhamos uma fé por aí
    além, taque, mudada, amanhã à mesma hora de acordo mas a que hora e onde, eu para
    trás e para a frente, com o pretexto de uma marcação no dentista para sair mais cedo,
    o chefe de seção, miudinho

  • Qual molar?
    em bicos de pés porque na família baixotes, a espreitar cá para dentro afastando-me
    o lábio com a ponta do lápis, sempre animador, sempre pronto a espevitar entusiasmos,
    numa careta de dó

  • Isso que você tem aí é um cemitério ou uma boca?
    portanto eu para trás e para a frente no que pensava a rua certa, acho que estas
    tipuanas, acho que esta esplanada, acho que este cão neste candeeiro já ontem embora
    todos os candeeiros se pareçam e todos os cães sejam iguais, o meu filho para mim, de
    regresso da vila

  • O empregado da oficina diz que com sorte talvez o pneu amanhã mas não promete
    nada
    cinco para as seis e eu sozinho, seis horas e eu sozinho, sei e cinco e eu sozinho a
    patrulhar o passeio, a espreitar as transversais, a vasculhar uma capelista e um
    minimercado paquistanês debruçado da entrada, apavorado de perdê-la, de braço
    direito dormente como sempre que me enervo, talvez um problema do coração embora
    o médico garanta que o coração o braço esquerdo mas acrescenta à cautela que aquilo
    que não falta são pessoas com as vísceras trocadas

  • Há de tudo na vida

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