apesar do porco a comer, apesar da faca, do sangue, apesar dos homens de avental
de borracha que se aproximavam dele, apesar da camisa de dormir de rendas a serená-
lo
- Estou aqui
apesar do corpo ao seu lado e de uma mão no seu peito, apesar do canhão sem recuo
que estremecia o mundo, apesar da mulher dele curada, da mulher dele com saúde, das
pedras do rim nem sequer mais leves que a água, inexistentes já, apesar da minha irmã
finalmente a olhá-lo - Pai
e tudo isto, é evidente, mentira diante dos caixões, dos defuntos, dos feridos, dos
remoinhos do cacimbo, da violência das trovoadas, do mastro da bandeira que um
relâmpago sumiu, apesar do - Quando o meu avô souber mata-se
e de um corpo de chapéu na cabeça a girar numa corda na trave do celeiro, apesar
de - Já acabou não vês já acabou
e do dia em que o meu filho preto pela primeira vez me sorriu, estava a olhar para
ele sem pensar nele e vai nisto, de súbito, sorri-lhe, a minha mãe - Vou fazer o bolo que tu gostas para jantarmos hoje
o psicólogo do círculo de cadeiras no hospital contente - Ora até que enfim bem disposto
ele que se visse uma bazuca morria de medo, que se assistisse a uma emboscada o
internavam em Luanda, o mulato da pistola ainda a olhar o meu pai, à espera, o mulato
largando a pistola - É a tua vez de atirar
e o meu pai a afastar o dedo do gatilho, a pôr o dedo no gatilho, a afastar o dedo do
gatilho de novo, o meu pai para o mulato - Tu
um mulato quase branco estendido de costas na terra sem cessar de olhá-lo, quieto,
sem medo, sem pedir fosse o que fosse, esperando apenas mas esperando o quê, com
uma mosca poisada na bochecha, com os primeiros insetos em torno, uma espécie de
aranhiços ou formigas, a terra tremia mas podiam ser as pernas do meu pai, podia ser
um coração qualquer, não se sabia de quem, uma pessoa, um bicho entre as ervas, as
folhas, até a água, às vezes, estremece assim, não se vê mas sente-se estremecer assim,
a minha mãe para o meu pai num tom divertido, tocando-lhe no ombro, durante anos
tocou-lhe no ombro, penso que sempre o invejei por isso, se não tomássemos atenção
não dávamos por nada - Tens o bolo que tu gostas à sobremesa hoje
enquanto o meu pai de pé diante do mulato sem a ouvir, Lisboa 10 000 quilômetros,
Moscovo 13 000, os galões já desbotados, da cor do camuflado, um pedaço de adesivo
da enfermaria, riscado a lápis verde, a consertar um pedaço de tecido do cotovelo, a
minha irmã na casa da aldeia a mirá-los, nem sequer um retrato do meu avô tínhamos,
para quê, morreu, a cadela das perdizes morreu pouco depois, não cheguei a conhecê-
la, parece que um bicho pequeno, remexido, agora uns ossos dispersos, se ainda sobram