António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

humilde, enfeitado com pulseiras e relógio que brilham, o que eles gostam do que brilha,
do que cintila, do que não vale nada, o porco nem me olhava, entretido com um balde
de fruta bichosa, amanhã nós três mortos e a casa fechada, a aldeia uma miragem, o
cemitério só ervas, o último velho sem olhar para nada, a minha irmã se por acaso tornar
a passar por aqui



  • Acho que tivemos uma casa acolá
    não muita segura

  • Acho que acolá
    a observar as árvores, a encosta

  • Acho que acolá mas não tenho a certeza
    morando sei lá onde ou com quem, trabalhando em quê, em que pensas mana, o que
    pretendias na vida, o que te interessava, conta-me

  • Só queria ver-te adeus
    e se por acaso te espreitasse da janela tu em parte nenhuma, às vezes, ao que eu
    cheguei, penso se existes de fato, não tocavas em nada, não olhavas para nada, não
    conversavas com ninguém, a mesma roupa meses a fio, o mesmo silêncio, o mesmo
    alheamento, o mesmo ângulo de mesa sem nos ligares sequer, ouvindo vozes interiores
    que ninguém conhecia, o meu pai e a minha mãe, evitavam não sei porquê olhar-te, não
    tocavas em nada, quase não comias, se te perguntassem fosse o que fosse um gesto a
    afastar a pergunta, chegavas sem aviso, partias sem te despedires, quando a mãe
    adoeceu nenhuma alteração em ti, ficavas um momento sem olhar ninguém e depois a
    porta da rua a bater sem termos sequer dado conta que saíras de casa, se chegasse à
    janela via-te caminhar na rua no mesmo passo de sempre até dobrares a esquina, nunca
    te conheci nenhum namorado, nenhuma colega, nunca te vi rir, nunca te vi chorar,
    nunca disseste o meu nome e no entanto vinhas todos os anos para a matança do porco
    olhando para o meu pai, para as facas, para mim como se soubesses o que acontecerá
    amanhã, acho que o meu pai e a minha mãe sabiam como tu e todavia não falaram, para
    quê, tal como nem o meu pai nem eu mencionamos uma só vez as mãos e as orelhas
    cortadas, os quimbos a arderem, os animais degolados, Sua Excelência para mim depois
    de nos examinar um a um numa estranheza aflita

  • Quando estou com vocês não compreendo nada
    com receio de nós, inquieta e nessas ocasiões eu não preto da mesma forma que o
    meu pai não branco, nós criaturas estranhas que a aterrorizavam, às vezes quando
    sozinhos em casa sentia de repente o seu medo de mim, pequena no sofá, indefesa,
    frágil, rodeada de metralhadoras e uzis, quase a gritar de pavor, ou antes dava-me ideia
    que fechavas a boca com força para não gritares de pavor, tinha a certeza que se chuva
    lá fora e uma voz num microfone, entre marchas militares

  • Sinto nos vossos olhos a alegria de irem servir à Pátria
    enquanto os mabecos te prendiam os tornozelos e te saltavam à garganta, enquanto
    os bidões de gasóleo levantavam as chamas até às copas das árvores, enquanto a tua
    amiga a acariciar-te

  • Comigo aqui ninguém te fará mal
    enquanto o alferes para os soldados

  • Mata mata

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