António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1
presa na boca, incapaz de sair, a palavra


  • Filha
    que depois diminuía no corredor a transportar-se a si mesma, eu para o meu irmão,
    na adega

  • Não vais
    sem continuar a frase e o meu irmão de costas para mim, imóvel, o meu irmão

  • Também gosto dele mas tenho que o fazer
    como o meu pai sabia que ele tinha que o fazer e não se protegia, aceitava, tudo isto
    por um preto de bruços com uma bala nas costas imagine-se, o que vale um preto
    senhores, quem não os ouvia gritar com o napalm incluindo os leprosos de farrapos a
    arderem que o diga ou quem não os viu fugir quimbo fora na direção do rio enquanto o
    apontador de metralhadora os apanhava um a um, a trotarem ou de gatas ou rastejando
    até, o meu pai contava que a água em labaredas também, que os ramos das árvores
    mais próximas tombavam um a um, que os ossos ao léu carbonizados mas o soldado
    português é tão bom como os melhores, carbonizados, negros, o médico para a minha
    mãe

  • Com os problemas dos rins a única coisa que é preciso é paciência
    a minha mãe por enquanto não magra, pálida somente, a caminhar com mais
    dificuldade que dantes, sem me cortar as unhas há que tempos, sem me pentear,
    desinteressada das coisas, a olhar para dentro, demorando o dobro do tempo na
    cozinha, especada nos azulejos, se o meu pai, por exemplo

  • Dá-me licença que a acompanhe?
    acho que nem o ouvia, continuava a dirigir-se para o quarto não atentando nele ou
    então

  • Deixa-me
    ou então

  • Não me maces agora
    a pescada demasiado crua ou demasiado cozida, se o meu pai interrompendo-se de
    súbito, não sentado, não levantado, numa atitude de alarme

  • Não ouves passos no corredor?
    a minha mãe sem paciência para os passos

  • Enquanto eles entram e não entram aproveita e come
    e no que diz respeito ao meu irmão o meu pai com cautela, percebia-se que lhe
    imaginava as intenções, lhe vigiava os gestos, verificava se ele no patamar fazendo sinal
    a outros pretos ou se alguma bazuca na rua, entre dois automóveis, apontada à janela,
    a impressão que cabras e galinhas no quarto, no corredor, na sala, um círculo de velhos
    fumando em silêncio, mulheres que voltavam do rio com latas de água à cabeça, formas
    que se moviam no capim do vestíbulo, quimbos em lugar de prédios na rua, antipessoais
    no empedrado lá em baixo, um fio de tropeçar nos degraus, os milhafres que antecedem
    a chuva voando às cegas na chana, um primeiro relâmpago, um segundo relâmpago
    demasiado distante mas cambulhando já de morro em morro, os túmulos escalvados
    dos sobas com palmeiras no topo, uma das mercedes à espera que a consertassem de
    uma mina, sem as rodas da frente e o motor amolgado, o meu pai para o meu irmão

  • Já não és o meu filho

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