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Estava na adega a acabar os preparativos para a matança, os alguidares, as cordas,
os aventais de borracha, o gume das facas, a sombra da nespereira que empurrei com o
cotovelo e nisto, sem que compreendesse o motivo, senti o corpo a baloiçar para a
direita e para a esquerda até perceber que me achava às cavalitas do homem estendido
de bruços na terra, que não conhecia, com uma bala na cabeça e uma ferida nas costas,
perto do quimbo, logo a seguir à mulher sem mãos nem orelhas, e que o homem me
levava na direção do rio a segurar-me os tornozelos com as palmas muito maiores que
as minhas, contornando as lavrazitas de mandioca, rodeando os caules de liamba,
fazendo fugir as galinhas que sobravam e afastando uma cabra a mover os quadris
ossudos, independentes um do outro como se pertencessem a animais diferentes, para
se afastar de nós, que estranho ser-se feito de bocados pregados ao acaso a tremerem
balidos, será minha esta perna, será meu este nariz, quem me dita o que eu penso,
napalm ao longe, na fronteira com a Zâmbia, os catangueses
- Uhuru
descobri no mesmo sítio do pescoço do homem o sinal que eu tinha, que esquisito o
sinal e que esquisito lembrar-me de repente dele eu que julgava haver esquecido tudo,
além do sinal a forma dos dedos idêntica, a última falange do polegar curtíssima, não
conversava com a minha mãe, não dormia conosco, entrava e saía, uhuru, distraído de
nós, sem um olhar, sem uma pergunta, uma ou outra ocasião puxava-a para a esteira no
meio das cabaças, dos frangos e dos irmãos e ficavam um bocado deitados, de frente,
em silêncio, com a minha mãe sem largar a asa de um galo que se debatia, todo unhas
e bico, a tornar-se muamba e uma velha a fumar a um canto, de queixo nos joelhos, sem
lhes dar atenção, a mastigar as próprias gengivas esvaziando-se de si, o que lhe ficará
dentro, o homem e eu paramos junto aos leprosos, a caminho do rio, segurando latas
com o que sobrava dos cotos, os dentes deles, porque não tinham lábios, enormes, uma
rapariga quase nua a perseguir outra rapariga guinchando de fúria, a apertar um pau
incerto nos cotovelos, o homem apanhou-me do chão enquanto procurava peixes numa
rede, encontrou um pequeno que guardou no cinto, afastando um cabíri que lhe saltava
em torno com um pontapé, voltou a instalar-me nos ombros e entramos na mata
enquanto um crocodilo de pálpebras mortiças escorregava no lodo, tudo isto sem falar
comigo enquanto eu me decidia finalmente por uma das facas na adega, Sua Excelência
a medo, baixinho - Tens a certeza que é o porco que vão matar daqui a nada?
em bundo, não em português que estranho, às vezes, ao olhar para ti, não te sentia
branca, desculpa, sentia-te preta, igual a mim por amor a mim, imagina como eu era
tonto, e quase te amava, quase não, amava-te, não me importava que me troçasses, me
tratasses mal, não me importava que fizesses pouco, não me importava a tua amiga,
bastava que estivesses ali, entendes, bastava escutar os teus passos, escutar os objetos
quando lhes tocavas, o teu medo às vezes - Não sentiste um barulho lá dentro?
o teu pedido enquanto te encolhias no sofá - Vai ver se está alguém na marquise tem paciência