o mais certo era nem sequer me ouvir, ouvia o próprio corpo ou nem sequer o corpo,
ouvia a doença somente, nunca mais
- Amor
claro, nunca mais o braço nas minhas costas, nunca mais a camisa de rendas, as
maçãs e as peras indiferentes a mim, gostava de ter tido um cachorro em pequeno, o
capitão para o soba embrulhado num pano desbotado, comiam os nossos restos e
insetos e bicharada miúda, ficavam séculos de mão estendida no arame na esperança
de um resto de peixe seco, de um osso, das bisnagas quase vazias das rações de
combate, já não tinham galinhas, já não tinham cabritos, coziam ervas, o capitão para o
soba - Quero os turras que vocês escondem aqui
e o soba de joelhos a tentar beijar-lhe as botas - Não tem
enquanto os soldados vasculhavam os quimbos, levantavam as esteiras, queimavam
as raízes de mandioca que sobravam ainda, pontapeavam cabíris que fugiam a ganir, a
minha mulher, antes das pedras, a acordar-me a meio da noite - Não chores
a acender a luz da cabeceira - Não chores
a segurar-me na cara - Era um sonho não aconteceu nada era um sonho
em pequeno queria ter um, era um sonho, um cachorro, a minha mulher - Um cachorro?
e talvez fosse um sonho, não sei, talvez continue a ser um sonho, nada disto
aconteceu, nada disto verdade, as orelhas cortadas, o napalm, os tiros, coisas que a
cabeça inventa, estive em África de fato, trouxe o meu filho de lá mas depois a gente
inventa sem dar por isso, quais metralhadoras, quais mortos, o que se passa comigo, se
perguntasse ao meu filho - Lembras-te de Angola?
ele calado, como podia lembrar-se com quatro ou cinco anos, um homem de bruços,
uma mulher sem orelhas, o meu filho de costas para mim a avaliar o gume da faca - Não sei
a única resposta que tive dele e não foi - Manda mosca manda mosca
foi - Não sei
de modo que a minha mulher tem razão, sonhos apenas - Acalma-te
eu sentado na cama a olhá-la - Não és preta tu
espantado que ela mãos, que ela viva, o psicólogo no círculo de cadeiras do hospital - A gente exagera sempre é compreensível
conforme o médico exagera com as pedras dos rins, nunca vi nenhuma a flutuar neste
quarto, não há doença que não se trate, não há morte que não se consiga evitar, o que