António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Rapaz
    a segurar-me o tornozelo e a largar-me o tornozelo já sem

  • Rapaz
    um velho militar apenas, que o soldado português é tão bom como os melhores, a
    prevenir-nos

  • Estou bem
    enquanto o helicóptero não chegava, apesar do rádio quebrando a cifra

  • Urgente urgente
    e o capitão sem protestar, calado, apesar do rádio

  • O miúdo preto matou o alferes com a faca do porco
    e da mão da minha mãe nas costas dele

  • Amor
    estendida ao seu lado na cama a tentar acordá-lo

  • É um sonho não te enerves é um sonho
    e as pedras de regresso uma a uma, o que os porcos sofrem meu Deus, o que
    soluçam, o que choram, o meu pai, pendurado pelos pés do segundo gancho, a gemer,
    não foi nenhum porco que veio da pocilga, aos trambolhões na estrada, ora de joelhos
    ora tentando levantar-se, foi o meu pai e não queria fazer-lhe mal, juro, tomou conta de
    mim, gostava dele, não queria, não foi o meu pai que eu matei, foram os tiros e a guerra,
    o gasóleo, o fogo, foi a lembrança do alferes paraquedista junto à ponte, foram os fios
    de tropeçar, foram as minas saltadoras, foi o general no cais

  • Sinto nos vossos semblantes a alegria de irem servir a Pátria
    foi isso apenas senhores, a alegria de irem servir a Pátria, foram os pretos que a
    polícia política obrigava a abrir a cova para lhes fazer saltar a cabeça lá dentro, para os
    ver pular contra as paredes de terra até se imobilizarem por fim, foram os choques
    elétricos nos testículos, foi a broca do dentista num dente são, foram os palitos sob as
    unhas, foi o psicólogo no círculo de cadeiras do hospital

  • Isso não pode ter acontecido
    e tem razão doutor, não aconteceu senão quando eu dormia e portanto pesadelos
    apenas, nada de real, claro, nada de verdadeiro, pesadelos apenas, o que a minha
    cabeça vai buscar meu Deus, o que a gente exagera, o que nós pensamos, voltei a África
    não voltei, sou feliz não sou, nenhum balanço de unimogue me ofendeu a espinha,
    nenhum problema no estômago, as minhas tripas perfeitas, de longe em longe um
    sonho e é tudo, com os exageros dos sonhos, nenhum

  • Mata mata
    nenhum sofrimento, vinte e sete meses de férias, três ou quatro sustos sem
    importância, uns tirecos ao longe, às vezes problemas de comida mas lá nos
    arranjávamos, problemas de falta de água mas estamos aqui, a casa da aldeia uma ruína
    agora, acabou-se a horta, o tanque de lavar roupa caído, a nespereira defunta com as
    raízes quase todas de fora, pesando sob o muro abaulado que vai perdendo tijolos,
    algumas nêsperas apodrecidas, verdes, metade da cancela das traseiras de pé embora
    incapaz de girar nos gonzos, a outra metade no chão, se mesmo assim conseguisse
    movê-la aposto que o meu pai

  • Rapaz

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