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Ao acordar Sua Excelência não estava no quarto, estava na cozinha com o meu pai e
a nespereira a beberem café porque tudo entra com o dia, folhas, pássaros, a ferrugem
da bomba da água, o pulmão quase quieto da serra que embora quase quieto nos incha
e desincha, para além de Sua Excelência e do meu pai deu-me ideia que o soldado da
messe em África de que não me lembra o nome mas que morreu lá lhes aquecia água,
se estava sozinho comigo varria o chão e oferecia-me sobejos de conserva da lata,
quando olhei para ele sumiu-se enquanto perguntava ao meu pai
- Apetece-lhe uma buchazita com uma sardinha dentro meu alferes?
e o meu pai muito mais novo de súbito, emagrecido por não sei quantos dias na mata,
marchando lento mas não à vontade por causa das antipessoais e dos fios de tropeçar
ocultos no capim, às vezes uma gazela ou outro bicho esbarrava num deles e escutava-
se um estampido ao longe o que obrigava o meu pai a deslocar-se com cuidado no
mosaico da cozinha onde os reflexos da nespereira pingavam gotas de luz que o menor
sopro de vento agitava, Sua Excelência só com uma nádega num banco alto de que saía
uma perna demasiado longa para o vestido curto e que sinceramente preferiria que
tapasse, não acredito que se eu no emprego das nove à uma e das duas às seis aquela
perna toda se mantenha no apartamento, à medida que se dissolvia o soldado para mim
(trago o nome dele debaixo da língua mas não me sai, não me sai) - Põe-te a pau com a escrita miúdo
apontando-me Sua Excelência com o queixo discreto e portanto também ele não
acreditava que Sua Excelência feita monja num tê dois baratucho à saída de Lisboa com
sandálias de paquistaneses de turbante não por cima e por baixo, ali dentro conosco
raspando-nos a cabeça e a sola dos pés, se chegava mais cedo encontrava-a com uma
amigueta na sala afagando os joelhos uma da outra em segredinhos divertidos, de voz
duas oitavas mais grave, dobradas como canivetes no sofá, fitando-me em soslaios de
alfaiate que me tirasse com desgosto - Tão preto ele não é?
as medidas, acotovelando-se num soslaio de troça e eu capaz de matá-las, tinha a
impressão que o meu pai, preocupado comigo, baloiçava entre falar-me e não me falar
de Sua Excelência e acabava por não dizer fosse o que fosse mastigando certezas doridas
e pensamentos amargos ao passo que a minha mãe, por trás dele, ia tentando sossegar-
me num acenozinho difícil de pontas de dedos e de um sorriso que se interrompia a
meio caminho ocupado a equilibrar nas pálpebras uma lágrima de oxalá eu me engane
mas apostava o que quiserem que um dia destes está-se mesmo a ver que vais ter
maçadas rapaz, a minha irmã, sempre opaca, distraída da gente ou a fingir-se distraída
da gente, imóvel numa cadeira de olhos fixos em nada, a quem sais tu, o que queres, o
que esperas, a perna de Sua Excelência aumentou ao levantar-se do banco não como as
pernas se levantam, como as cordas se desenrolam, com cinco
(parecem-me sempre mais)
unhas vermelhas espalmadas por ordem da grande à pequenina que continua a
apetecer-me beijar, perguntando ao alferes de camuflado ou de pijama, de pijama, o
mesmo pijama gasto, sempre o mesmo, de Angola, disso lembro-me