O Estado de São Paulo (2020-04-04)

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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 4 DE ABRIL DE 2020 Especial H5


Caio Nascimento*
Talita Marchao
ESPECIAL PARA O ESTADO


As mudanças na rotina com a
pandemia do novo coronavírus
mexeram com o emocional de
muitos, seja por conflitos fami-
liares na quarentena, medo da
doença e de perder o emprego
ou dificuldades no trabalho. Pa-
ra ajudar a manter a saúde men-
tal em tempos de incerteza e iso-
lamento, grupos de psicólogos
e psicanalistas se uniram para
dar atendimentos breves de for-
ma remota, por telefone, What-
sApp ou videoconferência – e
de forma gratuita.
Os aconselhamentos psicoló-
gicos funcionam como uma es-
pécie de escuta, um desabafo
em que a pessoa pode falar so-
bre suas preocupações, dores e
temores. Em muitos casos,
nem é preciso se identificar. En-
tretanto, este atendimento cur-
to (alguns chegam a durar cerca
de 20 minutos) não vale como
um tratamento terapêutico tra-
dicional. A ideia é oferecer um
canal para desabafar e tentar en-
tender que não há vergonha em
se sentir vulnerável neste mo-
mento de incertezas. Tudo fei-
to sob as regras do Conselho Fe-
deral de Psicologia.
As principais demandas rela-
tadas por psicólogos são co-


muns a muita gente neste mo-
mento: a preocupação com pa-
rentes idosos, em perder o em-
prego, com a falência do negócio,
com as contas vencendo, em sair
na rua e arriscar trazer o vírus pa-
ra dentro de casa e com a falta de
perspectiva pós-pandemia.
“A ideia é ajudar de forma sim-
ples. É quase como um bate-pa-
po em que a gente consegue se
colocar ao lado da pessoa para
sofrer um pouco junto, dizer
que ela não está sozinha e, even-
tualmente, indicar as possibili-
dades que ela tem para este meio
de enclausuramento”, conta o
psicanalista Felipe Giraldi. Ao la-
do da neuropsicóloga Aparecida
Natale, a dupla organiza os aten-
dimentos gratuitos online reali-
zados pela clínica Dr. Psico (drp-
sico.com.br). O projeto tem da-
do tão certo que a ideia é manter
a escuta terapêutica após a pan-
demia, como uma forma de aju-
dar a população.
O grupo de cerca de 50 profis-
sionais disponibiliza seus tele-
fones (incluindo celulares) pa-
ra contato com hora marcada.
Aparecida conta que, durante o
aconselhamento, a pessoa só se
identifica se quiser. “Tem pes-
soas que ligam e dizem ‘eu gos-
taria só de falar com alguém’.
Elas têm vergonha de dizer que
sentem medo”, conta.
“Um dia desses, um empresá-
rio ligou e pediu para não se
identificar. Ele estava angustia-
do com a questão financeira.
Ele ainda usou um termo bem

comum, ‘tem muita gente em-
baixo do meu guarda-chuva’, re-
ferindo-se à mulher e aos filhos.
Ele só queria conversar com al-
guém”, relata Aparecida.

Grupos de risco. Outra iniciati-
va do tipo é o Psicologia Solidá-
ria Covid-19, que atraiu, desde
março, mais de 800 profissio-
nais voluntários e 161 pacientes
de todo o Brasil. O foco são pro-
fissionais da saúde, que estão na
linha de frente do combate à pan-
demia, e brasileiros que estão no
exterior e foram impedidos de
voltar. A ação se estende a segu-
ranças, porteiros, faxineiros, re-
cepcionistas, técnicos de enfer-
magem, enfermeiros e assisten-

tes sociais de postos e hospitais.
As consultas também são no
formato de escuta terapêutica,
ou seja, atendimentos pontuais
que podem ser feitos mais de
uma vez sem levar em conside-
ração a história de vida da pes-
soa. “Focamos no momento
atual, no que ela está passando
em decorrência do coronaví-
rus”, destaca a neuropsicóloga
Paula Caruso, uma das idealiza-
doras do projeto. Para se cadas-
trar, acesse: bit.ly/psicovid.
Com foco em idosos, o Escuta
60+ (no Instagram, @escuta60-
mais) reúne oito psicólogos e psi-
canalistas que fazem os atendi-
mentos por telefone de segunda
a sexta-feira e domingo. De acor-

do com a voluntária Júlia Atana-
sov, as ligações que a equipe rece-
beu até agora são de idosos que
querem falar sobre qualquer coi-
sa que não seja a covid-19.
“Eles têm desejo de ouvir uma
voz que mostre que está ali para
o que for possível”, relata. “Tam-
bém surgem temas como dificul-
dades físicas, adoecimentos de-
correntes da idade, solidão, inse-
gurança e medo por não sabe-
rem quando e como a vida volta-
rá ao normal.”
O psicanalista Francisco No-
gueira cedeu a
tecnologia, o
endereço de
sua empresa, a
Relações Sim-
plificadas (o si-
te é o relacoes-
simplifica-
das.com.br/es-
cuta) e a verba de publicidade
que seria usada neste período pa-
ra liderar e apoiar um grupo de
profissionais independentes
neste trabalho de escuta breve.
Ele conta que um dos maiores
desafios é também lidar com as
próprias demandas emocionais.
“A gente faz reuniões para de-
bater casos e compartilhar expe-
riências, ver se alguém está
mais esgotado. Não temos só os
atendimentos gratuitos, mas
também os nossos próprios pa-
cientes, que seguem o acompa-
nhamento terapêutico online.
Estamos trabalhando muito
mais e doando as horas livres
para as escutas”, diz Francisco.

Surdos e mudos. Um grupo
que encara dificuldades na ho-
ra de buscar apoio psicológico
é o de surdos e mudos que de-
pendem exclusivamente da
Linguagem Brasileira de Sinais
para se comunicar, já que o do-
mínio de Libras por psicólogos
é limitado. Foi pensando nisso
que mais de cem profissionais
de todo o Brasil formaram a Li-
ga Nacional de Atendimento
Psicológico Social Online, pa-
ra acolher esse público no que
diz respeito à quarentena e ao
isolamento.
O psicólo-
go clínico e
coordenador
nacional da
iniciativa, Ra-
fael Mendes,
conta que es-
tá criando ain-
da uma lista de profissionais
para orientar pais de crianças
com transtornos, como déficit
de atenção, hiperatividade e au-
tismo, gratuitamente. Pessoas
que não se encaixam nesses
perfis também podem buscar
ajuda gratuita na Liga. O conta-
to pode ser feito pelo número
dos estagiários (bit.ly/psicoli-
ga), que direcionam para os psi-
cólogos credenciados. A ação
ainda está aceitando voluntá-
rios: cadastre-se pelo número
(11) 94059-0493.

]
ESTAGIÁRIO SOB A SUPERVISÃO DE
CHARLISE MORAIS

NÃO É PRECISO
SE IDENTIFICAR
DURANTE O
ACONSELHAMENTO

Grupos reúnem profissionais dispostos a oferecer assistência psicológica a quem está com dificuldades durante o isolamento


DIVÃ


VIRTUAL


Kaherine Ellison
THE WASHINGTON POST


Minha nova terapeuta parecia sá-
bia e simpática, com seu cabelo
chanel meio grisalho e óculos de
intelectual. Mas, como nunca
nos vimos ao vivo, como eu pode-
ria saber se ela não era um cara
descabelado, rindo às custas da
minha criança interior? Afinal,
ela (ou ele) era minha terapeuta
por mensagens de texto, contra-


tada num esquema meio Tinder,
quando cliquei na foto dela.
Quando me inscrevi, mal sabia
que estaria à frente de uma onda
que agora chega ao auge com a
pandemia de covid-19. Nosso no-
vo combo de angústias de saúde
e restrição de deslocamentos im-
pulsionou a adoção de aplicati-
vos de e-terapia, entre eles, Bet-
terHelp, 7 cups e Woebot (“Na-
da de divã, nada de remédio, na-
da de falar da sua infância”). E
também nada de seres humanos:
Woebot é um chatbot.
Os usuários de outro bot, o Wy-
sa, triplicaram desde o começo
da pandemia, diz o cofundador
Ramakant Vempati. Os gerentes
do Talkspace, que já contava
com 1 milhão de usuários, afir-

mam que o volume aumentou
25%. “A ansiedade está mais alta
que nunca, infelizmente”, diz
Neil Leibowitz, médico respon-
sável pelo Talkspace. Ele diz que
os clientes buscam mais ajuda
com problemas de relaciona-
mento ou solidão, dependendo
de como estão confinados, além
de preocupações financeiras.
Me inscrevi num plano do
Talkspace que, a um custo de
US$ 160 por mês (preço promo-
cional), me deixava mandar men-
sagens de texto à vontade e rece-
ber pelo menos uma resposta “as-
síncrona” por dia. Também po-
dia conversar em vídeo, por mais
US$ 65 a cada meia hora. Teorica-
mente, é mais barato do que os
terapeutas cara a cara, que co-

bram nos Estados Unidos mais
de US$ 100 por hora.
O baixo custo e a conveniência
de “falar” com minha terapeuta
superou algumas impressões so-
bre minha terapia analógica, no
qual eu era obrigada a me arru-
mar e ir a um consultório para
ser pressionada a me concentrar
nas razões que me levavam a sa-

botar meus relacionamentos e
carreira. Por outro lado, parecia
que eu estava escrevendo um
blog sobre meus problemas. Eu
organizava minhas respostas,
mudava de assunto e apagava as
partes estranhas. Mesmo que ti-
véssemos em uma “sala de bate-
papo privada”, ficava encucada
com a política de privacidade:
“Não garantimos que o Talkspa-
ce seja seguro ou protegido”.
Nós duas nos comportávamos
muito bem, como uma passagei-
ra e uma motorista de Uber, fa-
zendo de tudo para ganhar cinco
estrelas: eu era extremamente
cuidadosa; ela, às vezes, parecia
meio genérica. “Se sua vergonha
fosse fazer um discurso sobre vo-
cê, o que ela diria?”, ela pergun-

tou logo no começo.
Em outras ocasiões, parecia ge-
nuinamente perspicaz – como
no dia em que, sutilmente, me re-
preendeu quando disse que me
“distraí” da carreira nos anos
que passei cuidando dos meus fi-
lhos e dos meus pais. “Você está
diminuindo a importância de cui-
dar deles”, escreveu ela.
“O desafio dos serviços digitais
de saúde mental é aumentar o
acesso e a qualidade, para não
transformar os pacientes em co-
baias com serviços reduzidos”,
diz John Torous, pesquisador da
Harvard Medical School e presi-
dente da Força-tarefa de Avalia-
ção de Aplicativos de Smartphone
da Associação Americana de Psi-
quiatria. Quando conversamos, já
havia aprendido o suficiente so-
bre o Talkspace. Suspendi o servi-
ço após cinco dias. / TRADUÇÃO DE
RENATO PRELORENTZOU

Sextou!


l Diferenças

FELIPE GIRALDI

UNISPLAH

Dr. Psico. Felipe e Aparecida (E), em foto antes do isolamento

Apoio.
Há grupos
especializados
em idosos ou
profissionais
da saúde

Bem viver*


TERAPIA


GRATUITA NO


ISOLAMENTO


“O desafio dos serviços
digitais é aumentar o acesso
e a qualidade, para não
transformar os pacientes
em cobaias”
John Torous
PESQUISADOR DE HARVARD

Apps de terapia eletrônica ganham novos adeptos


Jornalista testou o


serviço nos Estados


Unidos antes da
pandemia e conta


suas impressões

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