O Estado de São Paulo (2020-04-11)

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A12 Metrópole SÁBADO, 11 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Fabiana Cambricoli


Até a pandemia do coronaví-
rus, a cloroquina era conheci-
da como um medicamento
usado no tratamento de
doenças como malária, lúpus
e artrite reumatoide. Com o
avanço da covid-19 e sem
uma terapia comprovada
cientificamente para comba-
tê-la, médicos ao redor do
mundo passaram a testar di-
versas drogas e associações
entre elas, especialmente pa-
ra os casos mais graves – e a
cloroquina é uma delas.
Ao menos 65 estudos estão
sendo realizados no mundo pa-
ra investigar a eficácia da cloro-
quina e hidroxicloroquina con-
tra a covid-19. Por enquanto,
três foram finalizados, dois chi-
neses e um francês, e os resulta-
dos são controversos. Mas, dian-
te da falta de uma opção certei-
ra e apesar de efeitos colaterais
graves, como arritmia cardíaca
e problema de visão, há médi-
cos que vêm utilizando a droga,
especialmente em pacientes
em estado grave ou crítico.
O que era mais um medica-
mento sendo receitado na luta
contra a covid-19 ganhou desta-
que após ser citado pelos presi-
dentes Jair Bolsonaro e Donald
Trump, dos EUA, como possí-
vel solução para a pandemia.
Nas últimas semanas, gover-
nos, agências regulatórias e en-
tidades médicas autorizaram o
uso compassivo do remédio pa-
ra pacientes internados (para
quando não há outra opção de
tratamento), mas ressaltaram
que os estudos finalizados até
agora não permitiam ampliar a
recomendação para pacientes
leves nem garantir a ausência
de efeitos colaterais.
Entidades médicas e de saú-
de tratam o tema com cautela. A
Organização Mundial da Saúde
(OMS) afirma que os possíveis
benefícios de cloroquina apre-
sentados nas pesquisas chine-
sas e francesa “precisam de con-
firmação por meio de estudos
randomizados (quando os pa-
cientes de cada grupo são escolhi-
dos aleatoriamente)” e afirma es-
tar “preocupada com relatos de
indivíduos se automedicando
com cloroquina e causando sé-
rios danos a si próprios”.
A Associação Brasileira de
Alergia e Imunologia (ASBAI) e
a Sociedade Brasileira de Infec-
tologia (SBI) também ressaltam
a falta de evidências e desaconse-
lham o uso mais amplo. “En-
quanto aguardamos a emergên-
cia de novos ensaios clínicos ran-
domizados multicêntricos para
avaliar os benefícios da contri-
buição de cloroquina / hidroxi-
cloroquina no tratamento da co-
vid-19, esses medicamentos não
devem ser prescritos de modo
generalizado e indiscriminado
nos casos leves e ambulatoriais
da doença”, disse a ASBAI.
Já a SBI afirmou em comuni-
cado considerar o tratamento
como “terapia de salvamento
experimental”, cujo uso deve
ser “individualizado e avaliado
pelo médico prescritor, avalian-


do seus possíveis efeitos colate-
rais e eventuais benefícios”.

Diretrizes. O Ministério da
Saúde vem embasando suas di-
retrizes na revisão da literatura
científica realizada por um gru-
po de cientistas brasileiros de
instituições como os hospitais
Sírio-Libanês e Oswaldo Cruz.
É esse trabalho que afirma que
65 estudos estão em andamen-
to e que 3 foram concluídos,
com resultados controversos.
De acordo com os pesquisa-
dores, são várias as limitações e
falhas das pesquisas, como
amostras pequenas de pacien-
tes, falta de um grupo controle
(pacientes que tomaram place-
bo) e ausência de metodologia
duplo-cego, ou seja, quando
nem pesquisadores nem pacien-
tes sabem quais doentes estão
recebendo o medicamento.
A principal polêmica, agora, é
justamente a ampliação da auto-
rização do uso do remédio para
qualquer paciente com a infec-
ção. O governo do Estado de
São Paulo e a Prefeitura deram
aval para a utilização na rede pú-
blica contanto que haja reco-
mendação médica e consenti-
mento do paciente, que precisa
ser informado dos riscos.
O relatório aponta que as pes-
quisas são consideradas “peque-
nas e com alto risco de viés, prin-
cipalmente associado à falta de
mascaramento”. O termo refe-
re-se ao problema dos chama-
dos estudos abertos, nos quais
pesquisadores e pacientes sa-
bem quais grupos estavam to-
mando o remédio e quais esta-
vam recebendo placebo, o que
pode influenciar os resultados.
É por esse risco de influência
que o “padrão-ouro” da pesqui-
sa clínica é o estudo randomiza-

do, com grupo controle e du-
plo-cego.
A principal divergência entre
o primeiro estudo chinês e a pes-
quisa francesa citados no relató-
rio do ministério foi observada
no índice de pacientes que tive-
ram remissão do vírus. No estu-
do francês, com amostra total
de 42 pacientes, 70% dos que
tomaram a hidroxicloroquina ti-
veram diminuição da carga vi-
ral contra 12,5% do grupo con-
trole. O estudo não era randomi-
zado nem duplo-cego. Já no es-
tudo chinês, feito com 30 doen-
tes, não foi encontrada diferen-
ça estatisticamente significati-
va entre os resultados dos dois
grupos: o controle, inclusive, te-
ve uma taxa de remissão viral
maior do que o que tomou a hi-
droxicloroquina (93,3% contra
86,7%). Após 14 dias, os 30 pa-
cientes apresentaram o exame
negativo. A pesquisa chinesa
era randomizada, mas aberta.
O terceiro estudo, também
chinês e com 62 participantes,
mostrou que o uso de hidroxiclo-
roquina propiciou melhora no
tempo de febre, de tosse e da

imagem do pulmão na tomogra-
fia, mas não mediu nem a remis-
são viral nem o desfecho clínico
final de cura, como alta, óbito ou
menor tempo de internação em
UTI ou de ventilação mecânica.
“O estudo francês não é rando-
mizado e os grupos não são com-
paráveis. O primeiro estudo chi-
nês é randomizado, mas o grupo
de pacientes é muito pequeno.
O segundo estudo chinês mediu
melhora de sintomas, mas não
acompanhou questões mais im-
portantes. É para se jogar fora os
resultados? Não. Mas eles não
têm força de recomendação pa-
ra uso em todos os doentes”, afir-
ma Álvaro Avezum, diretor do
Centro Internacional de Pesqui-
sa do Hospital Alemão Oswaldo
Cruz e parte da equipe que su-
pervisionou a revisão de estu-
dos feita para o documento do
ministério.
Também integrante do gru-
po que colaborou com a relató-
rio, a médica Rachel Riera, coor-
denadora do Núcleo de Avalia-
ção de Tecnologia em Saúde do
Hospital Sírio-Libanês, destaca
que os três estudos tinham pro-
blemas nos grupos controle por-
que em alguns os pacientes não
foram escolhidos aleatoriamen-
te ou, quando foram, os grupos
tinham perfis diferentes, o que
também pode influenciar nos
resultados. “Se a pesquisa não
tem grupo controle ou os gru-
pos são muito heterogêneos
não dá para atribuir o resultado
exclusivamente ao remédio”,
diz ela, que também é professo-
ra de medicina baseada em evi-
dências da Universidade Fede-
ral de São Paulo (Unifesp).

Métodos. A realização de um
estudo randomizado, com gru-
po controle e duplo-cego é im-

portante por duas principais ra-
zões: primeiro, porque, como
em parte dos casos a infecção
por coronavírus pode ser com-
batida pelo próprio sistema
imunológico, é preciso ter dois
grupos de pacientes em condi-
ções similares – um que toma o
remédio e outro que não toma


  • para saber se os resultados
    obtidos são de fato relaciona-
    dos à ação do medicamento e
    não a fatores como a estrutura
    hospitalar onde o paciente é
    tratado, a eventuais cuidados
    extras da equipe de saúde ou
    mesmo ao acaso. Segundo, pa-
    ra eliminar o risco de os resulta-
    dos serem prejudicados por al-
    gum viés, alguma conduta ou
    escolha feita pelos pesquisado-
    res que possa distorcer o desfe-
    cho, como seleção do perfil de
    doente que fará parte de cada
    grupo ou de quais casos serão
    relatados nos resultados.
    É esse último, inclusive, o
    principal problema de centros
    de pesquisa que apenas têm des-
    crito casos de melhora com a
    cloroquina, sem apresentar os
    dados dos demais pacientes:
    tanto os que não tomaram o re-
    médio quanto os que tomaram
    e não tiveram benefício.
    A Prevent Senior, por exem-
    plo, que conduz uma pesquisa
    sobre o uso do medicamento,
    informou que 300 pacientes já
    tiveram alta após a utilização da
    droga, mas não informou o nú-
    mero de pessoas que mesmo
    com remédio não melhoraram,
    o índice de óbitos nem a taxa de
    cura entre os que não fizeram o
    tratamento. A operadora afir-
    ma que os resultados comple-
    tos do estudo serão publicados
    em “veículos científicos indexa-
    dos”. O mesmo grupo francês
    que fez o estudo que ganhou


destaque no mundo publicou
ontem no site de seu instituto o
resultado do tratamento de
1.061 doentes tratados com clo-
roquina – 91,7% teriam sido cu-
rados. Mas além da pesquisa
não ter sido publicada em ne-
nhuma revista científica, não há
registro de grupo controle, o
que impede concluir ou não se o
resultado obtido foi por causa
do tratamento com hidroxiclo-
roquina.

Recomendação. De acordo
com os pesquisadores brasilei-
ros que têm acompanhado os
estudos sobre o tema, a falta de
evidências científicas não signi-
fica que o remédio não possa
ser usado em casos graves da
doença, em que não há opção
terapêutica, ou então dentro de
protocolos de pesquisa experi-
mentais, mas é preciso ter cau-
tela. “É fato que estamos em
uma situação fora do usual e
sem precedentes, e a decisão de-
ve ser do médico, com consenti-
mento da família. Mas é preciso
deixar claro que, apesar da gravi-
dade da situação, não há evidên-
cias nem de eficácia nem da se-
gurança que nos permitam bai-
xar uma recomendação de uso
rotineiro para todos os pacien-
tes”, diz Avezum.
Rachel ressalta que é possível
ter uma resposta sobre a eficá-
cia do medicamento em pouco
tempo, contanto que os estu-
dos sejam feitos de forma mais
criteriosa. “Se tivermos um es-
tudo bem feito, randomizado,
com 500 pacientes, já consegui-
mos saber se ela é eficaz ou não
rapidamente. Essa angústia pe-
la resposta é compreensível, o
que não é compreensível é aban-
donar o rigor metodológico”,
ressalta.

Mesmo sem estudo conclusivo, médicos ao redor do mundo utilizam droga contra malária para tratar pacientes graves de covid-


CHRISTOPHE ENA/AP

O debate em torno da cloroquina


Cientistas unidos. Ao menos 65 estudos científicos estão sendo realizados agora no mundo para investigar a eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Uma coalizão de centros médi-
cos coordenada pelo Hospital
Alemão Oswaldo Cruz iniciará
na segunda-feira um estudo pa-
ra testar a eficácia da hidroxi-
cloroquina em pacientes com
quadros leves de infecção pelo
coronavírus, mas que fazem
parte de algum grupo de risco
da doença.
Segundo Álvaro Avezum, di-
retor do Centro Internacional
de Pesquisa do Oswaldo Cruz, o
objetivo do estudo é avaliar se o
medicamento pode reduzir hos-


pitalização e complicações res-
piratórias em pacientes com co-
vid-19 que, em um primeiro mo-
mento, não foram internados
por não apresentarem maior
gravidade.
Dados da literatura científica
mostram que 80% dos contami-
nados pelo novo coronavírus
apresentarão sintomas leves e
não precisarão de internação. O
risco maior de complicação é re-
gistrado em grupos populacio-
nais com sistema imunológico
mais frágil. Os voluntários deve-
rão ser integrantes de um dos
seguintes grupos de risco: ido-
sos, hipertensos, diabéticos ou
fumantes.
“São pacientes inicialmente
com sintomas leves, em trata-
mento ambulatorial, mas que
têm um fator de risco que pode

levar a complicações futuras”,
explica Avezum.
Participarão da pesquisa
1.300 pacientes – metade vai re-
ceber o medicamento por sete
dias e a outra metade tomará
placebo pelo mesmo período.
Todos serão acompanhados
por especialistas por um mês.
“Se conseguirmos achar um
tratamento que reduza as com-
plicações e as hospitalizações,
serão menos leitos de UTI ocu-
pados, menos respiradores sen-
do utilizados. Teria um impac-
to positivo para o doente e para
o sistema de saúde”, destaca.

Alcance. Avezum conta que a
expectativa é incluir no estudo
pacientes de cem hospitais bra-
sileiros, públicos e privados,
em 50 cidades de 15 Estados do

País. “Já temos a confirmação
de participação de 40 hospitais
e devemos começar a inclusão
dos pacientes a partir da próxi-
ma semana”, afirma o pesquisa-

dor, que vai coordenador o estu-
do. A pesquisa já recebeu o aval
da Comissão Nacional de Ética
em Pesquisa (Conep).
O médico diz que a expectati-

va é de que os 1.300 pacientes
sejam todos recrutados no pe-
ríodo de seis a sete semanas. De-
pois disso, será necessário mais
um mês de acompanhamento.
“No período de 10 a 12 semanas,
acredito que já tenhamos os pri-
meiros resultados”, afirma.

Força-tarefa. O estudo é parte
da Coalizão Covid Brasil, inicia-
tiva que reúne hospitais, insti-
tuições de pesquisa e o Ministé-
rio da Saúde para testar possí-
veis terapias contra o coronaví-
rus. No fim de março, os hospi-
tais Sírio-Libanês, Albert Eins-
tein e HCor já haviam anuncia-
do outros três estudos dentro
da coalizão nos quais serão tes-
tados hidroxicloroquina, azitro-
micina e dexametasona em pa-
cientes internados. A estimati-
va é que os resultados dos estu-
dos com pacientes hospitaliza-
dos sejam divulgados no perío-
do de dois a três meses. /F.C.

Hospitais testarão droga em pacientes com quadro leve


Isolados, fiéis ‘lotam’ as missas online. Pág. A13 }


A cloroquina foi desenvolvi-
da como remédio contra a
malária, mas, apesar de ter
se mostrado eficaz, foi cons-
tatada uma alta toxicidade,
afetando principalmente a
visão. O plasmódio causa-
dor da doença também de-
senvolveu uma resistência à
droga. A hidroxicloroquina,
um derivado oxidado da clo-
roquina, surgiu como uma
alternativa menos tóxica.

PARA ENTENDER

HOSPITAL ALEMÃO OSWALDO CRUZ

Liderança. Hospital Oswaldo Cruz começa pesquisa em SP

Coalizão liderada pelo


Oswaldo Cruz avaliará


se hidroxicloroquina pode


diminuir complicações
em doentes de risco

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