O Estado de São Paulo (2020-04-11)

(Antfer) #1

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H8 Especial SÁBADO, 11 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


Sérgio Augusto


NÃO SEJA DESCOBRIDORA


DE NOVAS VACINAS’


Enrique Vila-Matas, escritor

Entrevista*


‘TEMO QUE A


LITERATURA


Em quarentena, Enrique Vila-Matas viu um de seus livros


chegar à semifinal do International Booker Prize 2020


l]


F


alar do quê?, eis a questão. De
coisas sérias, consequentes,
duras, quiçá úteis e até edifi-
cantes ou adoçar a boca do leitor com
o mel de fait divers escapistas? Re-
moer a deprimente arenga sanitária
martelada ininterruptamente pela
TV ou buscar um ponto de fuga leniti-
vo e psicologicamente profilático?
Sintetizando a questão em dois fil-
mes sobre enfrentamento ao nazis-
mo: vamos de Kanal ou de A Noviça
Rebelde?
(Kanal, informo a leigos e desme-
moriados, é um filme tenebroso do
polonês Andrzej Wajda, sobre a re-
sistência de seus patrícios à invasão
nazista. É quase todo ambientado
nos esgotos de Varsóvia. Já a fuga da
família Trapp, como até as vacas do
Tirol sabem, deu-se através das ver-
dejantes colinas de Salzburgo.)
Como as colinas pós-pandêmicas
tão cedo não irão revivescer ao som
da música, kanalizemos nossa pau-
ta. Ao esgoto, moçada.
Quem chegar vivo ao final da pesti-
lência em curso poderá testemu-
nhar algo que até recentemente pa-

recia ainda um tanto longínquo, embo-
ra visível no horizonte: a morte da agen-
da de austeridade econômica, a vítima
mais alvissareira do novo coronavírus.
Mas não se empolguem. A dívida pú-
blica de todos os países deverá atingir
níveis assustadores, as economias mais
frágeis, esse eterno grupo de risco, ve-
rão suas desigualdades aumentarem.
Pelos depoimentos que tenho lido, já
é quase consenso que aquele mundo
que até algumas semanas atrás desfru-
távamos, com menos e mais dificulda-
des, algumas superáveis, deixou de exis-
tir. Desapareceu. E não mais voltará.
A nostalgia encurtou seus prazos;
saudade não tem mais idade. Neste pri-
meiro ano da Era Coronavírus, Ano 1
d.c., até crianças já suspiram pelo car-
naval de 2020. Ou pelo Natal de 2019.
Sinto-me como se tivesse mudado
para outro planeta, cujos habitantes
não se interagem, não se confraterni-
zam, não se tocam, onde todos descon-
fiam e se repelem mutuamente. Até
quando seremos (ou nos sentiremos)
todos leprosos?
Vejo fotos e filmes em que as pessoas
conversam, cumprimentam-se, abra-

çam-se e dividem a mesma mesa ou o
mesmo sofá, e, do alto (no meu caso,
nove andares) da minha também pobre
experiência quarentenal, me pergunto:
qual mundo nos é mais estranho, este
que estamos vivenciando ou aquele que,
para o nosso bem, teremos de esquecer?
Nunca pensei que um dia fosse expe-
rimentar na vida real o que tão marca-
damente me intrigou ao ver, em crian-
ça, O Dia em que a Terra Parou, a versão
original, dirigida por Robert Wise. Co-
mo seria se nosso planeta fosse, como
no filme, inteiramente paralisado por
uma força superior, no caso, a mente

de um ET benigno, chamado Klaatu?
Todos os aparelhos elétricos são súbi-
ta e misteriosamente desligados, exce-
to os de hospitais e aviões em voo, re-
sultando num breve mas incisivo apa-
gão global, para que os terráqueos
aprendam a viver em harmonia, em
paz permanente. Não aprendemos.
A espaçonave que até nós trazia Klaa-
tu e seu fiel robô Gort aterrissava em
Washington, e como em 1951 a Guerra
Fria já estava amornando, tomaram-na
por um disco voador soviético, despa-

chado do Kremlin para destruir a
América e o resto do Ocidente. As xenó-
fobas imputações feitas à China, nas úl-
timas semanas, por conta do novo coro-
navírus, aqui e lá fora, seguiram portan-
to um padrão de idiotia paranoica e an-
ticomunismo fuleiro coberto de mofo.
A covid-19 é um Klaatu em forma de
microrganismo; quem sabe não ire-
mos tirar proveitosas lições de sua dis-
seminação. Já aprendemos a revalori-
zar a solidariedade, o papel da impren-
sa e o heroico SUS; pouca coisa não foi.
Mas ainda é pouco.
Das mil e uma ideias implementadas
para amenizar o claustro pandêmico e
desentediar a mídia impressa, uma das
mais fagueiras foi a série Janelas Para o
Mundo que um consórcio de jornais eu-
ropeus, encabeçado pelo alemão
Frankfurter Allgemeine Zeitung e o italia-
no Corriere della Sera, bolou com a par-
ticipação de escritores e filósofos euro-
peus. Cada convidado conta o que tem
visto de sua janela ou nela tem corveja-
do sobre a vida, os últimos aconteci-
mentos e o que mais lhe aprouver.
Residente em Milão, Antonio Scura-
ti, o festejado autor da mais recente bio-
grafia de Mussolini, M, o Filho do Século,
testemunha de sua finestra o que ele
define como o fim de uma era, “a era do
mais longo e distraído período de paz e
prosperidade desfrutado na história da

humanidade”. É com tristeza e uma
pitada de ironia que ele acompanha
e narra a transformação da cidade
mais rica, privilegiada e evoluída da
Itália, polo mundial da moda e do
design, em capital mundial da conta-
minação virótica.
Pouco importa que Nova York já a
tenha ultrapassado nesse ranking si-
nistro. Scurati não mora em Manhat-
tan, é milanês adotivo. A Milão que ele
descreve – com seus ricaços fazendo
fila para comprar um pão ordinário na
mercearia de imigrantes que antes
olhavam com desprezo, mas hoje é a
única em funcionamento nas vizi-
nhanças – me pareceu a que vimos em
A Noite, de Antonioni, metamorfo-
seando-se na proletária periferia que
De Sica retratou em Milagre em Milão.
A um metro de distância um dos
outros, “ao mesmo tempo ameaça-
dores e ameaçados”, os ricaços na fi-
la do pão formam uma felliniana fa-
rândola de mascarados. Suas impro-
visadas máscaras em nada lembram
as dos carnavais venezianos. São pre-
cárias gazes meio desfiadas, que pen-
dem de rostos transtornados pela
“melancolia mole dos restos de uma
era acabada”, arremata Scurati.
Da minha janela eu ainda vejo o
Corcovado e o Redentor, que lindo.
É um consolo. Boa sorte a todos.

Guilherme Sobota


Enrique Vila-Matas, é claro, es-
tá preocupado. O escritor cata-
lão de recém completos 72 anos
está isolado em sua casa em Bar-
celona e mesmo as notícias que
ainda virão nas próximas sema-
nas provavelmente não vão pa-
cificar de todo o seu ânimo. “Se-
guimos com a tendência de ir
vivendo como se tivéssemos
que viver sempre e não dispu-
séssemos nem de um segundo
para nos lembrar de que temos
que morrer”, escreveu na sua co-
luna mais recente no jornal es-
panhol El País, no último dia 30
de março.
“Ontem mesmo ouvia falar
um famoso na televisão que
não havia previsto nunca uma
tragédia como essa, ‘tão forte e
afetando tanta gente’”, escre-
veu Enrique Vila-Matas. “A
tanta gente? Mas se isso afeta a
totalidade da humanidade!
Mas se não é nada menos que a
morte, idiota!”
O livro que o levou à semifi-
nal do International Booker Pri-
ze (que teve seus finalistas
anunciados no início de abril)
foi a versão em inglês de Mac e
Seu Contratempo, publicado no
Brasil pela Companhia das Le-
tras com tradução de Josely
Vianna Baptista.
No livro, Mac, o personagem
principal e narrador, se ocupa
de ler, analisar e reescrever o
livro do seu vizinho, Ander San-
chez, e compartilha o processo
com o leitor por meio de um
diário. Talvez seja desnecessá-
rio o leitor saber que o livro que
Mac vai reescrever é, na verda-
de da vida real, Uma Casa Para
Sempre, publicado em 1988 pe-
lo próprio Vila-Matas, porque
isso não é mencionado em ne-
nhum momento no novo ro-
mance.
Afeito a viagens, reais e literá-
rias, o escritor respondeu às
perguntas a seguir sobre o li-
vro, o prêmio e a quarentena
forçada.


lEm alguns dos seus romances,
os personagens se apaixonam
muito de repente. Em Mac
e seu Contratempo, Mac
“se apaixona de novo” por sua
esposa, Carmen. Ter essa sensa-
ção repentina é um privilégio da
literatura?
O amor sempre é repentino.
Tanto na vida como na literatu-
ra. Nesta última, o arquétipo
do amor repentino é o de Dan-
te pela jovem Beatriz na Divina
Comédia. Que alguém se “apai-
xone de novo”, como ocorre a
Mac, não significa nada além
de que o personagem evolui
ou, se me permite dizê-lo, revo-
luciona, ou seja, que está tão vi-
vo quanto um ser real.


lUm escritor brasileiro (Marceli-


no Freire) disse que quando um
autor necessita de uma epígrafe
e não a encontra, deve inventá-la
e atribuí-la a outro escritor, por-
que ninguém vai conferir. A atri-
buição de trechos e frases a ou-
tros escritores já causou algum
problema a você?
Nunca. Nenhum problema.
Por que teria que criá-la? Mui-
tas vezes as citações, as epígra-
fes inventadas creio que são
minhas, que pensei e as escre-
vi. É como se quisesse dar ra-
zão a Wallace Stevens quando
disse que “as citações, como as
epígrafes, têm um interesse es-
pecial, já que alguém é incapaz
de citar algo que não seja suas
próprias palavras, quem quer
que as tenha escrito”.

lO senhor foi semifinalista do
International
Booker Prize.
Nesse ponto da
sua carreira, o
que significam os
prêmios literá-
rios?
Ser finalista do
International
Booker Prize – prêmio que se
divide entre o tradutor e o au-
tor – não é algo fácil. É um prê-
mio ao melhor livro do ano tra-
duzido ao inglês. E é difícil
porque, de saída, na Grã-Breta-
nha e nos Estados Unidos se
traduzem pouquíssimos auto-
res de outras línguas. Assim
que alcançar que Mac & His
Problems tenha chegado à final
é para mim estar indicado ao
Oscar de Hollywood como me-
lhor filme estrangeiro. Por tu-
do isso, estar na longlist foi
uma surpresa muito agradável
que atribuo especialmente à
categoria de tradutoras do li-
vro: Margaret Jull-Costa e Sop-
hie Hughes.

lVocê conhece o trabalho dos
seus concorrentes?
Li com admiração a obra de Sa-
manta Schweblin, a escritora
argentina que, a propósito,
tem uma breve e suculenta in-
tervenção em Mac e Seu Contra-
tempo.

lNesse romance, o cinema ad-
quire uma espécie de protagonis-

mo, mais forte do que em outras
obras recentes suas. A repetição
parece ser mais afeita ao cinema
do que à literatura, com suas tra-
mas predefinidas e previsíveis.
Está de acordo?
Se falamos de remakes, é certo
que na literatura o remake é
menos frequente do que no ci-
nema.

lUm trecho do romance:
“A calma, a paz da rua foram
uma bênção. Nem um ruído. Do-
mingo com todo mundo em casa,
dormitando, brincando, transan-
do, sonhando, a maioria na verda-
de se irritando, porque o domin-
go cria um vazio que sempre é a
nossa ruína”. A quarentena seria
um domingo ainda mais obscuro,
e contínuo?
Sim, mas aos domingos al-
guém sempre po-
dia descer à rua
e se sentar nu-
ma praça e estar
na vida, enquan-
to que agora não
há praças nem
há vida nas
ruas...

lO que a literatura pode
fazer por nós em tempos de
pandemia?
Se eu soubesse colocaria as
mãos à obra. Mas temo que a li-
teratura não é uma descobrido-
ra de vacinas.

lE pelo senhor?
Por mim? A literatura nunca
fez nada por mim.

lComo está passando pela pan-
demia?
Sobrevivendo.

ESCREVE AOS SÁBADOS

‘O AMOR É SEMPRE
REPENTINO, TANTO

NA VIDA COMO NA
LITERATURA’

11.04.01 d.c.


Quem chegar vivo ao final da
pestilência poderá testemunhar a
morte da austeridade econômica

TRECHO DE ‘MAC E SEU CONTRATEMPO’

MAC E SEU
CONTRATEM-
PO
Autor: Enrique
Vila-Matas
Tradutora:
Josely Vianna
Baptista
Editora: Com-
panhia das Le-
tras (288 págs.,
R$ 62,90, R$
39,90 o digital)

Autor. Aos
72 anos, está
isolado em
Barcelona

“É


estranho, mas
um momento
atrás, ao transcrever

esse trecho dos olhos cor de
safira, tive uma sensação súbi-
ta e irracional e me apaixonei
de novo por ela, como nos pri-
meiros tempos.
Controlamos nosso destino
ou forças invisíveis nos mani-
pulam? Eu me pergunto isso
enquanto escuto Carmen ir
para a cozinha, quase certo

que para fazer nosso almoço.
Ouço seus passos se afastando
no corredor e rememoro ou-
tros trechos do relato:
‘Filha insubmissa da egípcia
Ast, bela e pálida como a noite,
tempestuosa como o Atlânti-
co, Carmen foi se especializan-
do em provocar desesperos.’
Desesperado, levo a mão à
cabeça. Não sei bem por que
faço isso, talvez seja só amor
de perdição, só desespero de
tanto amor e de tanto temor
de perdê-lo.”

EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS
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