MATIAS AIRES RAMOS DA SILVA DE EÇA
(116) Oh, quantas vêzes um pretexto divino serve
para autorizar humanos interêsses! As coisas mais
santas sabem os homens aplicar a fins os mais injustos:
qualquer sem-razão para ser permitida, basta que seja
necessária; o ponto é, que haja quem saiba introduzir a
necessidade dela: os princípios mais inalteráveis se
alteram; o ponto é que o interêsse ou a vaidade sejam
partes. As regras não governam aos homens, êstes é
que governam as regras. As leis não compreendem ao
legislador, nem aos que estão junto dêle; as
prerrogativas do poder parece que são comunicáveis
até uma certa distância; daí para baixo ficam sendo
como uma luz, de que se acabou a esfera. Só nos
efeitos visíveis da Onipotência não vemos, que
nenhum se mude, nem altere; o movimento dos astros,
o progresso do tempo, a regularidade das águas, tudo
guarda uma ordem certa e infalível: o Artífice
Supremo não comunica o seu poder, mais do que a si
mesmo, isto é, à sua providência; por isso as leis, que
êle ideou no princípio, e antes dos séculos, são as
mesmas que subsistem hoje. Quem viu ainda, que
houvesse dia em que as águas não crescessem, e
baixassem? Que o sol se apartasse do zodíaco, que a
lua deixasse as suas fases, que as estrêlas fixas
variassem, e que o firmamento não circunvolvesse em
vinte e quatro horas o universo? Quem há que não
admire as sucessões do tempo nas estações do ano, a
vegetação da terra, a produção dos animais, a dureza
das pedras, a virtude das plantas, a variedade das côres,
o cheiro dos aromas, o encanto das vozes, os impulsos
da atração, do repouso, e do movimento? Finalmente
tôdas as coisas ainda observam o mesmo ser original, a
mesma correspondência, a mesma economia, com que
o Autor do mundo as fêz: tudo o que foi instituição
divina, e que não depende da