REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS
tro, para o deixar sem defesa, e para o render com as
suas próprias armas; também como o discurso
fabricamos armas contra nós, e essas são as mais
fortes, porque é como um mal que se forma dentro em
nós, e que é maior à proporção que é nosso: o dano
exterior admite mais reparo.
Não são as ciências as que costumam pacificar (129) o
mundo; desordená-lo sim. O exercício ou a vaidade das letras,
tôda se compõe de discussões, obje-ções, e dúvidas; a disputa
em si é coisa mais principal do que a matéria da questão:
alteram-se os ânimos, mas não se persuadem, porque não
disputam pela razão, mas pela disputa: e esta se se acaba, é
porque acaba o tempo dado para disputar; o relógio aparta os
combatentes; êstes separam-se, porém nenhum vai sabendo
mais; porque como no argumento não buscam a verdade, por
isso esta sempre fica ignorada, oculta, e desconhecida; o ponto
é, que fique satisfeita em um a glória de arguir, e em outro a
vaidade de responder; e assim não se tratam as coisas, tratam-
se as palavras delas: daqui vem, que o ficar vencido na forma,
é o mesmo que ficar vencido em tudo; porque a substância é
como coisa estrangeira, e indiferente. De dois textos con-
trários a fadiga que resulta, é ver, se há meio de os poder unir,
e conciliar: que a razão esteja em um, e não em outro, isso
importa menos; a arte está em sutilizar, de sorte que ambos os
textos fiquem conservados, e que a nenhum se tire a sua
autoridade magistral; tire-se embora a fé à verdade, e à justiça;
porém não ao texto; êste sempre deve servir de regra, por mais
que seja regra errada, e não direita; o empenho da vaidade não
está