188 MATIAS AIRES RAMOS DA SILVA DE EÇA
semeia sangue, para o sábio colher flores. É certo, que
cada potentado não é mais do que um só homem ; na
campanha sim pode comandar muitos mil: uma voz,
um sinal, um clarim basta para fazer mover um corpo
formidável; porém na paz não é assim, porque nela o
governo é como uma guerra civil, que se faz entre os
mesmos cidadãos, e entre os mesmos naturais; então
mandam os sábios; por ser guerra sem estrondo, não é
menos arriscada; nela se vêem traições, ataques,
sutilezas; aquilo que em guerra viva decide a espada,
na paz decide a pena; esta também corta, ainda que não
tão depressa, e nisto mesmo consiste um dos seus
modos de cortar; a lentidão aflige à maneira de um
martírio, que para ser maior, se faz por arte vagaroso; e
com efeito a morte parece que não é morte quando
chega, mas sim quando está para chegar; o último
instante é insensível, porque é como um tempo, que se
não compõe de tempo; a dor para se fazer sentir,
necessita de espaço; por isso a agonia não é quando
alguém acaba, mas quando está para acabar. Assim são
as dilações, de que no ócio da paz se formam os
conflitos; estamos vendo acabar-se a nossa vida, sem
que se acabe a nossa dependência; esta vai ficando
como herança; e para ser herança infeliz, sem
estimação, nem prêço, sempre passa com a qualidade
de incerta, e duvidosa, porque sempre fica dependente
da inclinação, do arbítrio, e do juízo humano: isto é o
mesmo que não ficar sujeita a coisa nenhuma certa,
mas a uma pura sorte. A fortuna, o tempo, a ocasião, o
humor, a hora têm mais parte nas decisões, do que a
lei, a verdade, e a justiça; esta, ou a sua imagem sim-
bólica, em uma mão tem a balança, e na outra a
espada: mas que pesa na balança? Ponderações,