fortuna, e da desgraça, se podiam de tal sorte infundir
no sangue, que a um constituíssem sangue nobre, e a
outro fizessem sangue vil. A nobreza, e a vileza, são
substâncias incorpóreas, porque são vãs; e se é
verdade, que podem estar no sangue, será talvez por
algum modo intelectivo, imaterial, e etéreo; mas parece
que nem assim podia ser, porque aquilo que é vão, de
nenhuma sorte existe. A inexistência da nobreza ainda
é menos, que a inexistência de uma sombra, porque
esta ao menos é um nada que se vê; a imaginação pode
fingir uma quimera, porém dar-lhe corpo, não; pode
imaginar a quimera da nobreza, porém introduzi-la nas
veias nunca pode ser. Os homens enganam-se com o
que imaginam; parece-lhes que o mesmo é imaginar,
que formar e que é o mesmo idear, que ser. O engano,
ou a vaidade da nobreza poderia ter lugar, se os
homens assim como a quiseram pôr interiormente em
si, se contentassem com a pôr de fora; isto é, se a
fizessem consistir nas ações exteriores; perde-ram-se
em buscar o sangue para assento da nobreza; aquêle
engano ficou visível, e fácil de perceber. Todos sabem,
que a imaginação não pode dar, nem tomar corpo: a
ilusão do pensamento nunca pode ser mais do que
ilusão. O sangue não está sujeito à opinião, só depende
das leis do movimento, e da matéria; as distinções, que
o pensamento considera, não passam do pensamento,
nêle ficam, só nêle podem existir, no sangue não. A
nobreza, e a vileza, são nomes diferentes, mas não
fazem diferentes sangues; êstes são iguais em todos; e
por mais que a vaidade finja, invente, e dissimule, tudo
são imagens supostas, e fingidas; tudo são opiniões,
que todos sabem que são falsas; tudo são sonhos de
homens acordados. A verdade se ri de ver a gravidade,
o gesto, e circunspecção com que as gentes
zelinux#
(Zelinux#)
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