REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS
que de longe a considera, se estremece; por via do
pensamento se lhe comunica de alguma sorte a dor, e
assim nem por fugir ao castigo, fica livre dêle. A
vaidade entende que tudo quanto é nosso, é susceptível
de aflição e de prazer, de respeito e de vitupério; e
assim nos persuade que para as razões da mágoa e do
contentamento, a nossa semelhança tem ser, a nossa
sombra vida, e a nossa estátua sentimento.
A falta de religião e de bons costumes, faz cair (75) o
homem no estado total de perversidade, a falta de religião
consiste em se não temer a Deus, a falta de costumes resulta
de se não temer os homens; e verdadeiramente quem não
temer a lei de Deus nem as leis dos homens, que princípio lhe
fica por onde haja de praticar o bem? A nossa natureza pro-
pende para o mal, e por isso foi preciso prescrever-lhe um
certo modo de viver; vivemos por regras. No exercício do mal
achamos uma espécie de doçura, e de naturalidade, as virtudes
praticam-se por ensino, o vício sabe-se, a virtude aprende-se.
Miserável condição do homem! O que devia saber, ignora, e o
que devia ignorar, sabe: para o que nos é útil, necessitamos de
estudo, e para o que nós é pernicioso não; para o bem
necessitamos de lembrança, e para o mal de esquecimento. É
necessária que nos esqueçamos do mal que já sabemos, e que
nos lembremos do bem, que devemos saber; uma coisa custa-
nos a lembrar, a outra custa-nos a esquecer. O vício fazemos
sem arte, sem tempo, sem mestre, e sem trabalho; a virtude
não vem comu-mente, senão como fruto da experiência, da
meditação, dos preceitos, e dos anos: para o vício não