REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS
do vem de um grande amor; há delitos em que o
perdão se alcança em favor do mesmo crime; então
aborrece-se o efeito, mas a causa admira-se; ninguém
quisera o sucesso em si, mas todos invejam o motivo.
Um amor medíocre, e vulgar só se ocupa no (94) deleite
dos sentidos, e dêle faz a maior felicidade; um amor sublime
alimenta-se em contemplar o objeto que ama; êste é o amor
humano de quem se diz, tem semelhança com o amor divino.
Há vícios, que de alguma sorte, parece que dão documentos
para a virtude. O amor ordinário é impulso da natureza; o
amor subido é como uma emanação da alma; aquele é sujeito
à saciedade, e por consequência à dor; porque a saciedade é
uma espécie de dor, e de tormento, porém êste não é
susceptível de algum desassossêgo; aquele busca fora de si o
alívio; este acha em si mesmo o contentamento; um é como
dependente da vontade de outrem; o outro é isento do arbítrio
alheio. O nosso bem só deve depender de nós; por isso nos
fazemos infelizes, à proporção que buscamos a nossa
felicidade em outra parte. Mas como pode deixar de ser
assim? O nosso desejo não se pode conter dentro de nós,
porque os seus objetos todos são exteriores; a cada instante
envelhecemos, porém os nossos desejos a cada instante se
renovam, e renascem: vivemos no mundo rodeados de uma
imensidade de coisas diferentes, e estas sucessivamente vão
sendo o emprêgo do nosso cuidado, e das nossas atenções;
tôdas acham em nós uma certa disposição, que faz, que a
umas queremos, e a outras não; as nossas paixões são as que
escolhem, ou reprovam; as coisas já vêm configuradas