DOSSIÊ SUPER 19
te ter mulheres ociosas. Sim, se o maridão
mantinha uma esposa e filhas olhando pa-
ra o teto em casa, sem nada para fazer, isso
significava que ele podia pagar quem fizes-
se: a criadagem.
Dessa situação de cidadã de segunda classe,
figurante da personalidade do marido, obe-
diente e quietinha no seu canto, reprimida
em todos os seus desejos, é que vinha esse
distúrbio: um transtorno na mente que se
desenvolve em sintomas físicos e psíquicos,
mas sem causa orgânica. “Para exprimir sua
aspiração à liberdade, as mulheres não tinham
outro recurso senão a exibição de um corpo
atormentado”, afirmou a historiadora e psi-
canalista francesa Elisabeth Roudinesco,
biógrafa de Freud.
Acha que é frescura? Tente passar uma se-
mana, um mês, um ano da sua vida dentro
de casa... sem TV nem internet.
A história da psicanálise começa justamente
com Sigmund Freud levando a sério a “frescu-
ra” dessas mulheres reprimidas, e encontrando
ferramentas para tratá-las. Mas ele só começou
a achar que isso fosse possível depois que co-
nheceu o trabalho de um médico francês genial,
descobridor do aneurisma e das causas das he-
morragias cerebrais: o neurologista Jean-Martin
Charcot (1825-1893).
Psicossomáticas
Charcot chamou atenção no Hospital Sal-
pêtrière, em Paris, por fazer demonstrações
com pessoas histéricas sob efeito de hipno-
se. Durante o transe, ele conseguia remover
completamente o sintoma do paciente: fazia
alguém com paralisia nas pernas voltar a andar,
ou um suposto cego enxergar novamente. Mas
ele não curava a histeria – passado o transe,
os sintomas voltavam.
O importante dessas experiências é que
Charcot conseguiu comprovar hipóteses fun-
damentais para que os transtornos viessem a
ter um tratamento adequado no futuro. Ele
provou ao mesmo tempo que a histeria não
era caso de possessão demoníaca, como acre-
ditavam os medievais, nem era provocada por
uma lesão física – não há hipnose que faça um
paralítico andar ou um cego voltar a ver. (De
quebra, ele ainda expôs à comunidade médica
que homens também podiam ser histéricos,
para a revolta de muitos colegas.)
O que existia por trás do sofrimento dessas
pacientes só podia ser uma doença de cará-
ter neurótico: um conflito mental que algum
mecanismo misterioso transformava em
problema físico. E isso fascinou um dos ou-
vintes mais atentos das apresentações de
Charcot no Salpêtrière. Freud, óbvio – que
passou uma temporada em Paris para buscar
os insights que não encontrava entre a clas-
se médica vienense.
A identificação de Freud com Charcot foi
imediata. No ápice de sua fama, o cientista
francês foi chamado de “Napoleão das neuro-
ses”, já que era uma autoridade em alterações
patológicas do organismo com origem psíqui-
ca – no conceito que se fez das neuroses na-
quela época, além da histeria, encaixaram-se
o comportamento obsessivo e as fobias... sem-
pre transtornos relacionados com ansiedade.
Charcot, aliás, foi acusado de falta de ética
por atentar contra a dignidade dos pacientes
nessas apresentações. E os acusadores ti-
nham razão: o francês não estava tratando
a histeria das pessoas, apenas usando-as
como cobaias para provar suas teorias. Para
Freud, no entanto, isso pouco importava. As
palestras de Charcot haviam fornecido uma
iluminação: se a hipnose, que causa uma
alteração no estado de vigília, permitia que
um médico eliminasse sintomas histéricos,
é porque esses problemas têm origem numa
outra parte da mente, muito além da nossa
consciência. Sinal de que, além de uma re-
alidade material, palpável, com a qual a gen-
te lida racionalmente, existe uma realidade
psíquica fora do nosso alcance.
Você já viu aqui que a morada dessa outra
realidade é o inconsciente. Restava a Freud
descobrir como acessá-lo. Até que a experi-
ência de Josef Breuer com a histérica Anna O.
abriu uma porta que jamais seria fechada.
Sessão do neurologista
Jean-Martin Charcot,
que hipnotizava
“histéricas” em Paris. O
francês foi uma grande
influência para Freud.
Para o
homem do fim
do séc. 19,
ter esposas
ociosas e
entediadas
era
motivo de
orgulho:
sinal de
que podia
bancar a
criadagem.
imagem: Getty Images
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