Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1

64 FREUD


Com a publiCação de O Mal-Estar
na Civilização, seu livro campeão de
vendas e talvez o mais acessível para o
público leigo, Sigmund Freud estendeu
seu interesse pela mente dos indivíduos
para os aspectos neuróticos de toda a
sociedade. Essas novas ideias, reuni-
das num trabalho bastante pessimista,
foram influenciadas pela experiência
avassaladora da Primeira Guerra e num
tempo em que o planeta enxergava o
fundo do poço com a quebra da Bolsa
de Nova York e a ascensão do Parti-
do Nazista na Alemanha. O que não
faltava era inspiração para que Freud
apontasse seu charuto para as origens
da infelicidade.
Antes, só mais uma observação sobre
as diversas traduções de Freud: o título
original desse livro é Das Unbehagen in
der Kultur (literalmente, “O Mal-Estar
na Cultura”), e suas primeiras versões
para o inglês e o francês ganharam os
títulos de Civilization and its Discon-
tents (“Civilização e seus Desgostos”,
numa tradução livre) e Malaise dan la
Civilisation (“Mal-Estar na Civilização”).
No Brasil, você encontra tanto “na Cul-
tura” quanto “na Civilização”. Como esta
última tem sido a mais usada, e Freud
não diferencia muito cultura e civiliza-
ção, é com ela que vamos seguir.
Continuando, então. Nesse livro, Freud
diz que é mais fácil achar um venusia-
no montado num unicórnio que um ser
humano feliz de verdade num centro
urbano. Bom, ele não usa essas palavras

exatas, mas é isso o que ele quer dizer.
Por conta de todas as circunstâncias da
nossa vida, os objetivos do princípio do
prazer e de evitar a dor não são atingidos,
a não ser temporariamente. “Aquilo que
chamamos ‘felicidade’, no sentido mais
estrito, vem da satisfação repentina de
necessidades altamente represadas, e por
sua natureza é possível apenas como fe-
nômeno episódico.”
Já no outro lado da moeda, a infelici-
dade tem três caminhos muito eficazes
para se instalar nos nossos corações
e mentes: os sofrimentos do corpo (a
doença, o envelhecimento), a hostili-
dade do mundo externo (no passado,
grandes predadores; no presente, todas
as desgraças que você lê no noticiário)
e as relações humanas em todo o seu
potencial de frustração (como as redes
sociais deixam bem claro).
Segundo Freud, isso é tão óbvio para
o indivíduo que a maioria desiste da
felicidade utópica e concentra seus es-
forços na redução de danos, quer dizer,
dos sofrimentos. E isso acontece pelas
seguintes vias: a neurose, a intoxicação


  • vamos beber para esquecer – e a psico-
    se. Ou pela religião também, que reúne
    um pouco de cada uma dessas saídas,
    rebaixando o status da vida na Terra,
    fazendo com que a pessoa troque o ra-
    ciocínio pela fé e também propondo um
    mundo de fantasia, onde tudo é dogma,
    em substituição às incertezas do mundo
    real. “A este preço, pela veemente fixação
    de um infantilismo psíquico e inserção


num delírio de massa, a religião consegue
poupar a muitos homens a neurose indi-
vidual. Mas pouco mais que isso”, afirma.
Daqueles três caminhos para a in-
felicidade, Freud coloca seu foco na
insatisfação que vem das relações
humanas – mais especificamente no
âmbito da formação da civilização. Ao
combinar suas teorias do inconsciente
com teses sociais, o pai da psicanálise
lança aqui mais uma de suas ideias
mais significativas e duradouras: a de
que, por maiores que sejam os avan-
ços tecnológicos e científicos, volta-
dos para a melhoria da qualidade de
vida da população, há uma divergência
inconciliável entre a civilização que
trouxe todo esse progresso e as nossas
pulsões mais primitivas.
Embora essa evolução nos tenha dado
remédios contra os males do corpo, uma
certa segurança contra as hostilidades do
mundo externo e também uma regula-
mentação dos vínculos entre as pessoas,
o processo civilizador exige em troca
um sacrifício daquilo que temos de mais
humano. A saber: sexo e violência.
Por isso, é impossível ser feliz viven-
do numa sociedade moderna. Nesse
aspecto, as comunidades da Pré-His-
tória davam um banho na gente.

O homem é o
lobo do homem

Até o ponto que é possível conhecer,
não havia muita restrição cultural para
o sexo entre os nossos ancestrais mais
distantes. Uma pintura de cerca de 3 mil
anos a.C., encontrada na Itália, descreve
um homem transando com um asno. Já
na Sibéria foram encontrados desenhos
de homens copulando com alces. Como o
surrealismo foi um movimento artístico
que só surgiu milênios depois dessas
imagens, tudo indica que elas represen-
tem situações que de fato aconteciam –
os nossos antepassados recorrendo até
a zoofilia para atender a suas pulsões.
Quanto à agressividade... bom, sem os
freios da civilização, as aglomerações
mais primitivas tinham um espaço e
tanto para botar para fora sua pulsão de
morte. Mesmo muito antes que espadas
e escudos tivessem sido inventados, o
indivíduo já tinha as principais ferra-
mentas para destruir, ferir e suportar os
piores golpes: seu próprio corpo.

MÁQUINA DE


MOER GENTE


Confortos da tecnologia, avanços da
medicina... Mesmo com isso, haveria
mais motivos para ser infeliz do
que feliz. na sociedade moderna.

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