Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

D


abandonara nosso imaginário – que os americanos estavam ocupando
mesmo contra a nossa vontade, como uma árvore gigantesca espalhando
seus galhos pela superfície da Terra. Eles nos irritavam cada vez mais
com os suas lições de moral, seus acionistas e fundos de pensão, a
poluição que espalhavam pelo planeta e o nojo que tinham de nossos
queijos. Apenas uma palavra era capaz de designar a pobreza de sua
superioridade, fundada em armas e na economia: “arrogância”.
Conquistadores sem ideais, exceto em relação ao petróleo e aos dólares.
Seus valores e princípios – contar apenas consigo mesmo – não davam
esperança a mais ninguém além deles, e nós sonhávamos com “um outro
mundo”.


e início foi difícil acreditar naquilo – como mostraria depois um
filme em que se vê George W. Bush, feito uma criança perdida,
sendo incapaz de esboçar uma reação sequer à notícia –, foi difícil
pensar e sentir qualquer coisa, e só conseguíamos ficar de olhos grudados
na televisão, repetidas vezes, para ver as Torres Gêmeas desabando, uma
depois da outra naquela tarde de setembro – era manhã em Nova York,
mas para nós tudo terá ocorrido sempre à tarde –, como se, de tanto ver
as mesmas imagens, aquilo acabasse se tornando real. Ninguém
conseguia sair do estupor, que compartilhávamos com o máximo de
gente por meio dos celulares.


Surgiam inúmeros discursos e análises. O acontecimento em si, em sua
pureza, se dissipava. A proclamação do Le Monde nos revoltava: “Somos


todos norte-americanos.”[3] Em um piscar de olhos, nossa representação
de mundo tinha virado de ponta-cabeça, alguns indivíduos fanáticos,
vindos de países obscurantistas, armados só com estiletes, tinham
destruído em menos de duas horas os símbolos do poderio americano. O
prodígio de tamanha façanha causava espanto. Nós nos repreendíamos
por ter achado que os Estados Unidos eram invencíveis. Estavam se
vingando dessa ilusão. Vinha à mente outro 11 de setembro e o


assassinato de Allende.[4] Havia uma espécie de compensação. Em
seguida, precisávamos ter compaixão e pensar nas consequências. O que
mais importava era dizer onde, como e por intermédio de quem, ou de
qual meio, tínhamos recebido a notícia do ataque às Torres Gêmeas. Os

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