Folha de São Paulo - 13.03.2020

(ff) #1

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ilustrada


C8 SEXTA-FEIRA, 13 DE MARÇODE 2020


José Padilha escreveu umtex-
to àFolhase dizendo vítima de


um linchamentomoraleusan-
do argumentos desonestosco-
moodedizer queMalcolmXfoi
assassinado pornegros negan-
doopapel do ódioracial cri-
ado pela supremacia branca.
Não discuteaconstrução so-


cial doracismoecomohomens
como elesebeneficiamhisto-
ricamentedissoe,ainda, põe
foco naspessoas negras,como
se pessoas brancastambém


não pudessem odiar umasàs
outras.Isso, tendoemvistaque
ele mesmo dirigiu “O Mecanis-
mo”,“ópera” mal-intenciona-
da de brancoscontrabrancos.
Alémdisso, afirma nuncater
sidochamado defascista àépo-
cadolançamentode“Tropa
de Elite”.Bom, necessário dizer
queapalavralinchamentode-
rivadeWilliamLynch, um se-
nhor de engenhoconhecido por
castigarpesadaeseveramen-
te pessoas negras escravizadas.

Essa lógicaainda perdura
atingindo,majoritariamente,
homens negros,comoforma
de puniçãoecontrolesocial.
Ofilme “O Nascimentode
uma Nação”,de 1915 ,éapon-
tado nosEstados Unidosco-
mo um marcoporretratar ho-
mens negroscomo irracionais,
predadoressexuaiscontramu-
lheres brancasepor glorificar
aKuKlux Klan,aKKK.Filas
se amontavamefoiàépoca
omaiorsucessodebilheteria

da história do país, impactan-
do significativamenteopensa-
mentoracialcomaconstru-
çãonarrativanegativasobre
pessoas negras, sobretudo na
construção da imagem do ho-
memnegroviolentoeabusa-
dor em potencial.
No Brasil,“Tropa de Elite” é
um grandemarcoparaiden-
tificação da população brasi-
leiracomaviolência policial.
Recordedepúbliconoano de
2007 ,olongaretrataCapitão

Nascimento, um policial mili-
tarcomandantedatropa que
fazincursões emcomunidades
pobres do Rio de Janeiroparao
pretensocombateao“tráficode
drogas” deforma implacável.
Há diversas passagens no fil-
mecomexibição de diferentes
tipos detorturas —todas essas,
no entanto, justificadas para
um bem maior,uma informa-
çãonecessária—,além de as-
sassinatodejovensperiféricos
em meio apalavrasde ordem
proferidas pelo herói, um bom
pai, preocupadocomobem-es-
tarsocialeque tambéméonar-
rador detodoofilme.
Aosubirem oscréditos nos ci-
nemas, muitas pessoas se levan-
taramparaaplaudir,comenta-
vamnas escolaseemseus tra-
balhoseforam envolvidas pe-
la narrativa;programas derá-
dioetelevisão dedicaram lon-
gas matérias efusivasà“geni-
alidade” da obra,camisetasfo-
ramfeitas, músicas gravadas.
Tamanhofoiosucesso do fil-
meque mais de dezanos após
sua estreia,algumas de suas
expressões maiscélebres estão
cristalizadasnovocabulário
brasileiro.
Écomum ouvir de umapes-
soa, ao se impressionarcom
apotência de outra, dizer que
“elaéfacanacaveira”—quere-
meteaosímbolo doBope,divi-
são da polícia glorificada por
su aletalidade.
“Homens de preto, qualéa
sua missão?Éinvadirafave-
la edeixarcorpo no chão!” era
uma das músicascantadas pe-
los novatosenquanto corriam
no ritual.Perguntamos:deque
corpos estãofalando?Sabemos
muitobem.
Nesse sentido, “Tropa de Eli-

te”foi paraoBrasil naconstru-
çãodenarrativas, símbolos e
condutas,oqueo“Nascimento
de uma Nação”foiparaaépo-
canosEstadosUnidos.
Se no norte,aobraserviu para
afixaçãodohomem negro como
violentoesexualmenteperigo-
so,oque serviu parajustificar
osuperencarceramentoeolin-
chamento (real) de homensne-
gros; no sul,olonga brasileiro
serviuàglorificação do abuso
policial,ànormalizaçãodaexe-
cuções decorposfaveladoseao
atrasododebatesobrealegali-
zação do tráficodedrogas—tu-
do aquilocontraoque Marielle
Franco, comovereadoraepes-
quisadora, se levantava.
Se José Padilha nãofoicha-
mado defascista, que bom que
otempo se encarregou de des-
cortinarodiscurso de ódio do
filmeresponsável por encora-
jar unidades de polícias letais.
Vivemos num paísemque a
mediocridade brancadesfila
seguradesi, enquanto produz
obras que glorificamementem
parabeneficiar um ministro
da Justiçadeumgovernocom
inexplicáveis ligaçõescommi-
lícias. Mais umavezignoram
os cineastas negros mostran-
do queoaudiovisual brasilei-
rosegue sendo umafarrade
poucos amigos.
Sua presençaemqualquer
obrareferente aMarielleéum
acintedeumhomem que quer
melhorar sua imagem usando
ahistória de uma mulher que
denunciouoque ele filmouem
“Tropa de Elite” e“OMecanis-
mo”.Padilharevolucionáriaéa
Maria, entidade dereligiões de
matrizes africanas paraaqual,
quando chega,cantam:“A rre-
da homem, que aívemmulher!”.


  • Djamila Ribeiro


Mestreemfilosofia política pelaUnifespecoordenadoradacoleçãodelivrosFeminismos Plurais


Vivemos num país em queamediocridade branca desfilaseguradesi


Um acinteàmemória de Marielle


Linoca Souza


|dom.FernandaTorres, DrauzioVarella|seg.LuizFelipe Pondé |ter.João PereiraCoutinho |qua.Marcelo Coelho |qui.Contardo Calligaris |sex.DjamilaRibeiro|sáb.Mario Sergio Conti



  • ÚrsulaPassos


riodejaneiroÉdifícil segu-
raroímpeto de deitar sobre
uma enorme massaroxa de
fios grossosdeveludo cinti-
lanteque parecetãoconfor-
tável. Eosofá“Boa” ésóuma
entreoutrastentações daex-
posição dos irmãosCampa-
na que seráabertanestefim
de semana, no Rio deJaneiro.
“É atraentesobretudo para
crianças,vai serumproble-
ma paraasegurançadomu-
seu”,brincaFernando Cam-
pana, metade daduplacom
oirmão Humberto, enquanto
caminha pelo espaçodoMu-
seudeArteModernadoRio.
Namaior mostrados desig-
nersbrasileiros jáfeitanopa-
ís, estão maisde 80 peças, en-
trepoltronas,sofás,tapetes,
lustresemóveis,todascriadas
nos 35 anos de trabalhodadu-
pla. Cerca de 80 %delasnun-
ca foramexpostasnoBrasil.
Há esculturas decada um
deles em trabalhosolo, como
uma sériedeFernandocom-
posta por bonequinhos de sol-
dados que são,naverdade,
apontadores de metal,epor
miniaturasdemonumentos
famosos,comoatorre Eiffel
eoBig Ben, ou umcachorro
engolindo lixodesenhado por
Humbertoefeitoemcerâmica
portuguesaBordalloPinheiro.
AitalianaFrancescaAlfa-
no Miglietti organizouamos-


tracomo uma espécie de flo-
resta,comaltastorrescober-
tasdefaixas de piaçavaque
criamsetorescomnomesco-
motempo,amor,sonhoeme-
tamorfose. Dastorres saem
asvozesdosirmãosHum-
bertoeFernando,que lêem
ostextos sobreseu trabalho
escritos por AlfanoMiglietti.
Elescomentam queaitali-
ana, assimcomo eles,nãovê
diferençaentredesignearte.
“Hoje nãoexiste maisfrontei-
rasentreasartes,apessoa po-
de ser performáticamesmo
sendo jardineiro. Nóstraba-
lhamoscomfigurino,ceno-
grafia, paisagismo,arquitetu-
ra,esculturas”,diz Fernando.
Tampoucofazem distinção
entrearteeartesanato.“Nós
somos artesãos, nãovejo ar-
tesanato deformapejorativa,
porque, quandoébem pensa-
do,oartesanato édesign.Nos-
so trabalho àsvezesparececa-
sual, mastemumaconstrução
da casualidade”,diz Humberto.
“O mundo hoje quer trazer
devoltavalores quebuscam
anão pasteurização, éimpor-
tante criar peçassingulares,
incluir ascomunidades naca-
deia produtiva,eter respon-
sabilidade social”,completa.
Em 2009 os irmãosfunda-
ramoInstituto Campana, que
buscaresgatartécnicas arte-
sanais, trabalharcominclu-
são socialepreservaraobra
da dupla. Há na mostrauma

Irmãos Campana


refletemBrasil


exuberanteem


mostranoRio


Exposição no MAM abriga mais de 80


peças criadaspelos designerseborra


as distinçõesentrearteeartesanato


poltronafeitacom ursinhos
decouroconfeccionados por
mulheres ligadasahomens
que estão no sistemacarce-
rário no interiordeSãoPau-
lo ou umtapetecom bonecos
detecidocosturados por mu-
lheres do interior daParaíba.
Aobramais antigadamos-
traéumacadeirade 1989 ,
dacoleção“Desconfortáveis”,
feitadeferro. Humbertoconta
que,naquele momento, queri-
amquestionaromodernismo.
“Seráque omodernismoéa
melhor escola pararepresen-
taropaís? Passamosapesqui-
saroBrasil profundamente,
as culturas africanaeindíge-
na”, diz. “Eoque estáemvias
de desaparecer.”
“O Brasil nãoéumpaíscarte-
siano,écheio de misturas”, diz
Fernando,sobrecomoopa-
ís inspira otrabalho dos dois.
KendallJenner,uma das ir-
mãs Kardashians,comprou
um “Boa”háquatroanos. Se
oleitor nãoéamigodeKen-
dall,enem deoutros quete-
nham Campanas emcasa, po-
de ao menosobservar abeleza
econforto que as peçasdos ir-
mãos brasileiros transmitem.
Quem visitaroMAM po-
de aindaconferir,emmeio à
mostradoacervodomuseu,
uma sala dedicadaàcarioca
WandaPimentel,mortaem
dezembro. Sãopinturas, seri-
grafias, desenhoseobjetos da
artistadanovafiguraçãosele-
cionados porFernando Coc-
chiaraleeFernanda Lopes.
Segundo Cocchiarale, gra-
çasàressignificação do pa-
peldas mulheres nas artes,
otrabalhodePimentel está
emfase dereconhecimen-
to crescente. Seus trabalhos,
emcoreschapadas que dia-
logamcomacomunicaçãode
massa doscartazes, mostram
pedaços de figuras de mulhe-
resemambientes íntimosre-
cortados,exalando sensuali-
dade numa visãofeminina.

Irmãos Campana
–35Revoluções
MAM-Rio,av. Infante Dom
Henrique, 85,tel. (21) 3883-5600.
Ter. adom.,10h às 17h.R$14(grátis
às quartas). Abertura: 14/3, às 15h;
até17/5. SaladedicadaaWanda
Obras dos Irmãos Campana emexposição no MAM do Rio FotosDivulgação Pimental fica em cartazaté 24/5.
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