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H8 Especial SÁBADO, 16 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
EM ‘HARD’
A INDÚSTRIA
Caderno 2
Série cômica da HBO estrelada por Natália Lage traz mulher
de elite que herda uma produtora de filmes pornográficos
PORNÔ
O
que mais detesto nesta pan-
demia é ser olhado como
uma ameaça. Pensam: O que
será que ele tem? Será que passa o
que ele tem?
Existem pessoas tão capacitadas
para o altruísmo que, mesmo sem
qualquer vaidade ou interesse, ex-
perimentam uma grande satisfa-
ção com o contentamento do ou-
tro, e fazemos o bem não por incli-
nação, mas por dever, disse Kant.
Que foi direto ao assunto: conser-
var a própria vida é um dever e algo
para o qual todos possuem uma in-
clinação instintiva.
Nas primeiras semanas de isola-
mento social, paramos de sorrir. Ao
cruzar com vizinhos íntimos, nem
acenos. Eles desviam. Posso ser a
morte. Meus filhos podem ser a
morte. Eles se acostumaram. Veem
seus amiguinhos do prédio e não
chegam perto. Se o amiguinho che-
ga, os pais logo o puxam.
Parece que todos somos terroris-
tas prestes a explodir. Em supermer-
cado, afastam-se. Grades e cordões
de isolamento delimitam nossa pas-
sagem. Não podemos encostar em
nada. E, se encostamos, imaginamos
a morte rondando. Não nos sentimos
mais bem-vindos. Nem nosso dinheiro
é aceito sem antes uma higienização,
seguindo o protocolo de segurança.
Distraído, por duas vezes saí sem
máscara. Enfiei a camisa na cara e tre-
mi, como num pelotão de fuzilamen-
to. Sou temido e temo. No carro, com
as janelas abertas, um pobre coitado
veio pedir dinheiro para comer. Apro-
ximou-se demais da janela. Não usa-
va máscara. Apoiou-se no retrovisor.
Ele não queria matar. Só queria não
morrer de fome.
O altruísmo de Kant, o princípio
supremo da moralidade, foi-se de
vez. Nos tornamos nova-iorquinos
no inverno, que não se olham, não se
cumprimentam, andam de cara amar-
rada, não te abrem portas, não te car-
regam coisas, não ajudam, não que-
rem olhar cruzado, e se você se aproxi-
mar muito, já escutava antes da pan-
demia: “Stay back!”.
Até na barraca de pastel da feira livre
tem fila com distanciamento. E o di-
nheiro deve ser colocado numa cesti-
nha. Padocas, literalmente às moscas.
Em farmácias não se pode aproximar
de farmacêuticos.
Estádios de futebol, concertos, festi-
vais de rock e de cinema, Meca e Praça
de São Pedro, carnaval, balcão apinha-
do do boteco, manifestações de protes-
to ou apoio, paradas gays, marchas com
Jesus, procissões, maracatu, trio elétri-
co, tudo à espera de uma vacina, que
pode durar um, dois anos, como pode
não vir, como não veio a da aids, que
tanto esperamos, e com a qual fizemos
planos, malária, dengue, ebola, Sars,
zika, chikungunya e outros vírus de
doenças infectocontagiosas.
Viajar de avião? Alguma companhia
aérea vai sobreviver a tamanha crise do
setor? A Royal Caribbean Cruises pede
uma grana emprestada e oferece alguns
dos seus 28 navios como garantia, que
valem ao todo US$ 29 bilhões, incluin-
do o Synthony of the Seas, que faz o
Titanic parecer um rebocador. Valiam.
Se viajar de navio era uma roleta-russa,
como se servir de maionese num buf-
fet, imagine agora.
Aliás, e os buffets? E Las Vegas sem os
buffets? E os cassinos sem buffet bara-
to, uma orgia de cores, sabores e desper-
dício?
Comida, por sinal, passou a ser trata-
da como veneno. A única pizza que pe-
di, nesses tempos de quarentena, me
deu tanto trabalho, que nunca mais pe-
di. Embrulhei-a numa toalha, separei
como um cirurgião cada pedaço da cai-
xa de papelão, imaginei pizzaiolo, entre-
gador, maquininha, tudo contamina-
do. Que estresse... Por uma massa com
queijo, tomate, azeitona e manjericão.
Alguns perderam parentes, empre-
go, empresa, todos nós empobrece-
mos. Alguns lutam pela vida num hos-
pital de campanha. Outros, em casa,
lutam para respirar.
Aqueles que já tiveram contato com
amigos, vizinhos ou parentes contami-
nados, ganham uma lista de afazeres.
Quarentena? Existem os exames de
sangue IgA e IgG, para detectar anticor-
pos ao Sars-CoV-2, o popular novo co-
rona, ou seja, as pessoas que já foram
expostas, feitos por laboratórios que,
claro, os planos não cobrem. 550 pra-
tas, num bom laboratório. Interpretá-
los é um enigma. E tem falso negativo.
Não tem exame para todos, mas so-
bra para o 1%. Então, parte-se para o
IgM e o aterrorizador PCA para quem
excreta o vírus, pois está com ele. É o
do cotonete? É. Mas não é um cotone-
tezinho inocente. Tem um palmo. “Pa-
rece um estupro no cérebro”, me defi-
niu um parente. Ficou dois dias com
narina, globo ocular, ouvido e cérebro
doendo. 450 pratas, no mesmo labora-
tório, sem reembolso.
Tem gente com IgA e IgG negativo e
PCA positivo. Dedução: está contami-
nado recentemente e contaminan-
do. Com IgA e IgG positivo e PCA
negativo. Foi contaminado há
mais de duas semanas e não esta-
ria mais. Mas tudo pode estar erra-
do. O membro de um casal tem
IgA e IgG positivos e PCA negati-
vo. O outro, tudo invertido. Sem
sintomas e lógica.
Ao menos, estão sem sintomas.
Mas estão livres? Nada disso. O ví-
rus sofre mutação, dizem. Na Co-
reia do Sul houve reinfecção. De-
pois, negaram. Segundo a RTBF (re-
de de televisão belga), pessoas as-
sintomáticas não desenvolvem imu-
nidade ou muito pouca imunidade,
as pessoas com poucos sintomas ou
bastante sintomas desenvolvem
uma imunidade moderada, e quem
teve uma infecção muito severa de-
senvolve uma forte imunidade.
E, se sou imune, posso conviver
com outros, numa pequena bolha?
Ando com um passaporte de imuni-
dade, o exame laboratorial no bol-
so? Qual o tamanho ideal dessa pe-
quena bolha? Cloroquina ajuda?
Por que nosso presidente diz uma
coisa, e seu ministro outra? O ameri-
cano também.
Única certeza que tive foi, apesar
da máscara, a de voltar a sorrir e
cumprimentar as pessoas. Algu-
mas continuaram emburradas. A
maioria curtiu.
Marcelo Rubens Paiva
ESCREVE AOS SÁBADOS
Alessandro Giannini
ESPECIAL PARA O ESTADO
Em Hard, série brasileira que
estreia no domingo, 17, às 23h,
no canal HBO e na HBO GO,
uma mulher da elite, bem nasci-
da e educada, assume o coman-
do de um negócio que lida com
pornografia e consegue revolu-
cioná-lo. Narrada em clave de
humor, essa história une mun-
dos opostos e desafia vários pre-
conceitos e tabus. Ainda assim,
garantem os criadores, a porno-
grafia aqui funciona como um
meio para falar de protagonis-
mo feminino em um universo
carregado de estereótipos, e
não como um fim em si mesmo.
Coproduzida pela HBO La-
tin America e a Gullane Entrete-
nimento, Hard é a adaptação de
um programa homônimo fran-
cês, que foi ao ar originalmente
entre 2015 e 2018. E traz para a
realidade brasileira a história
de uma advogada que recebe co-
mo herança do marido, morto
subitamente em um acidente
doméstico, uma produtora de
filmes pornográficos. A primei-
ra temporada tem seis episó-
dios de meia hora cada.
“Nosso objetivo era fazer
uma comédia de costumes”,
diz Roberto Rios, vice-presi-
dente de produções originais
da HBO Latin America. “Por-
nografia tem um quê de hu-
mor, porque lida com aspectos
tabus da nossa vida. Uma ques-
tão importante na adaptação é
que os ‘roteiristes’ (porque há
profissionais homens e mulhe-
res) tomaram muitos cuida-
dos para serem profundamen-
te justos ao lidar com o tema, e
não defendê-lo nem torná-lo
grosseiro.”
Escrita por Danilo Gullane,
Juliana Rosenthal, Patricia Le-
me, Mariana Zatz e Laura Vil-
lar, Hard conta a história de So-
fia (Natália Lage), uma advoga-
da que renunciou à carreira pa-
ra cuidar da família. De uma
hora para outra, sua vida perfei-
ta de classe média alta desmo-
rona ao descobrir que o mari-
do morto mantinha uma pro-
dutora de filmes pornô por
trás de uma empresa de facha-
da. Bela, recatada e do lar, ela
se vê em meio a um mundo
com o qual não tinha nenhuma
intimidade e sobre o qual culti-
vava muito preconceito. O
elenco conta ainda com Deni-
se Del Vecchio, Martha Nowill,
Julio Machado e Fernando Al-
ves Pinto no elenco.
Natália conta que, para inter-
pretar Sofia, fez o habitual per-
curso da preparação para o pa-
pel, o que incluiu a leitura do
roteiro, pesquisas sobre a in-
dústria pornográfica e a busca
de filmes e documentários so-
bre o tema. Mas o mais impor-
tante, diz a atriz, foi se colocar
no lugar de sua personagem e
assumir os próprios preconcei-
tos diante de algo que ela mes-
ma mal conhecia: “A humanida-
de é muito conservadora e acho
que a pornografia provoca uma
curiosidade, mas também uma
grande repulsa em grande par-
te das pessoas. A Sofia vai en-
trar em contato com isso e vai
conseguir enxergar os seres hu-
manos que estão ali”.
“Botamos na frente dessa
história os aspectos mais hu-
manos da Sofia”, diz o produ-
tor Fabiano Gullane, que faz
uma participação especial co-
mo Alex, marido da protagonis-
ta – o personagem morre logo
no início do primeiro episó-
dio. “Vamos mergulhando na
história dela de um jeito muito
delicado e equilibrado, porque
aos poucos ela acaba queren-
do transformar aquilo em um
negócio mais humano, mais di-
verso e representativo. A por-
nografia é estruturante na
série, mas virou mais um am-
biente para acompanharmos a
evolução daqueles persona-
gens todos.”
Tendo como inspiração esté-
tica Boogie Nights, sobre o nasci-
mento da indústria do pornô
americana nos anos 1970, e
Blue Jasmine, sobre as transfor-
mações sofridas por uma socia-
lite que, de repente, se vê sem
status e dinheiro, o diretor-ge-
ral Rodrigo Meirelles buscou
dar personalidade à sua prota-
gonista e ampliar a diferença
entre os mundos nos quais ela
habitava e passaria a trabalhar.
“Ela é uma protagonista que
vai viver uma grande transfor-
mação. Precisávamos trazer is-
so para dentro do nosso univer-
so, criando um contraste maior
entre os mundos nos quais ela
vive, a classe média alta e o am-
biente pornô”, explica ele.
Além do processo de adapta-
ção da história, Hard também
passou por uma atualização, já
que há uma diferença de quase
dez anos entre as produções
francesa e brasileira. Segundo
Meirelles, o pornô viveu uma
grande transformação nesse pe-
ríodo, indo dos DVDs nas ban-
cas de jornais para os sites gra-
tuitos. “Isso acabou sendo in-
corporado à história”, diz ele.
Um bastidor importante da
realização de Hard foi a partici-
pação de atores pornô profis-
sionais no elenco de apoio e na
figuração. Eles serviram como
consultores da série e apare-
cem em cenas na produtora
herdada por Sofia, a Sofix. “Foi
importante conhecer essas pes-
soas”, diz Natália. “Foi muito
lindo ultrapassar uma barreira
de preconceito e olhar essas
pessoas com amor e afeto. Eu
espero que o público possa, jun-
to com a Sofia, fazer esse mes-
mo trajeto.”
Seguindo uma tradição da
emissora, Hard terá um pod-
cast acoplado à exibição de ca-
da episódio, na HBO GO, no si-
te da HBO e nas principais pla-
taformas. A ideia é aprofundar
temas abordados ao longo das
histórias e falar sobre aspectos
criativos, contar bastidores da
produção e outras curiosida-
des. Com apresentação de Vini-
cius Calderoni, participarão
das rodas a atriz Natália Lage, o
diretor Rodrigo Meirelles e Lui-
za Campos, diretora dos episó-
dios 4 e 5.
l]
Incertezas
lSem preconceito
Única certeza que tive foi, apesar
da máscara, a de voltar a sorrir e
cumprimentar as pessoas
“Botamos na frente dessa
história os aspectos mais
humanos da Sofia. Vamos
mergulhando na história
dela de um jeito muito
delicado e equilibrado,
porque aos poucos ela
acaba querendo
transformar aquilo em um
negócio mais humano e
representativo”
Fabiano Gullane, PRODUTOR
“Foi muito lindo
ultrapassar uma barreira de
preconceito e olhar essas
pessoas com amor e afeto.
Eu espero que o público
possa, junto com a Sofia,
fazer esse mesmo trajeto”
Natália Lage, ATRIZ
De pernas pro ar. A vida perfeita de classe média alta de Sofia (Natália Lage, de casaco) desmorona ao descobrir que o marido morto mantinha uma produtora de filmes pornô
HBO