68 | Sabor. club [ ed. 41 ]
“Numa casinha branca, lá no Sítio do Picapau
Amarelo, mora uma velha de mais de 60 anos.
Chama-se Dona Benta. Quem passa pela estrada
e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo
e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu
caminho pensando:
- Que tristeza viver assim tão sozinha neste
deserto...
Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz
das vovós, porque vive em companhia da mais
encantadora das netas – Lúcia, a menina do
narizinho arrebitado, ou Narizinho, como
todos dizem.
Narizinho tem 7 anos, é morena como
jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns
bolinhos de polvilho bem gostosos.”
É assim que começa o livro Reinações de
Narizinho, de Monteiro Lobato, a obra que
dá origem a série vivida no Sítio do Picapau
Amarelo, introduzindo a personagem que viria
a ser, quem diria, protagonistaa na história da
culinária brasileira.
Quando Reinações foi lançado, em 1931, o
Brasil ainda vivia o esnobismo francês que viera
na transformação do centro do Rio, a Capital
Federal, nos moldes urbanísticos criados pelo
engenheiro George Haussmann, em Paris. E o que
o nacionalista Lobato via com desgosto eram pratos
daqui ganhando nomes e até técnicas francesas em
seu preparo, desprezando a nossa cultura também
nesta área. Ele, então, baseado na mesa farta que
Anastácia, a cozinheira que o alimentou desde
sempre, na sua casa, no Vale do Paraíba, começou
a elencar dezenas de quitutes que a Tia Nastácia,
a dócil cozinheira do Sítio, coloca na mesa da
D.Benta, dos seus netinhos e bonecas de pano ou
sabugos de milho que ganharam vida.
A mesa, diga-se, é o lugar onde os personagens
se refugiam depois das aventuras e... bolam
as seguintes.
O envolvimento do homem que adorava um
leitão pururuca, um picadinho, uma feijoada e a
boa “comida mastigável, que nutre e sustenta”, não
poderia dar em outra coisa, senão a compilação
de receitas do país inteiro que foram parar no
definitivo Dona Benta – Comer Bem.
Lançado em 1940, a obra tem milhões
(sim, milhões) de cópias vendidas, pela Cia. Editora
Nacional, criada pelo próprio Lobato, para publicar
livros que “olhavam para o Brasil”, distribuídos
de Norte a Sul, ajudando a formar o público
leitor do país.
Não foi difícil para Lobato, imerso num rico
universo gastronômico, reunir tantas receitas.
O trabalho começou em casa mesmo, no caderno
da D. Purezinha, a sua mulher, cozinheira de mão
cheia, famosa por encher a residência do casal, em
almoços e jantares inesquecíveis.
O nacionalista Monteiro Lobato via com desgosto pratos daqui ganhando nomes
e até técnicas francesas. Resolveu lançar um livro definitivo com receitas do país inteiro
Lobato e as formigas
)īääŷÎŲäƲě°ÎńĴäĸÙńńŦƙäÎė°Ĵ°Ʋ°ÙäŭΰƲě°ŲÙń°īäÙ°z°Ų°ĜÅ°ů
A revelação surge em carta, para o escritor mineiro Godofredo Rangel: “Não és capaz, nunca,
de adivinhar o que estou comendo. Estou comendo... Tenho vergonha de dizer. Estou comendo
um companheiro daquilo que alimentava S. João no deserto: içá torrado! Sabe, Rangel, que o
içá torrado é o que no Olimpo grego tinha o nome de ambrosia? Está diante de mim uma latinha
de içás torrados que me mandam de Taubaté. Nós, taubateanos, somos comedores de içás”,
referindo-se às saúvas caçadas no verão quando saem em revoada. Para Lobato, içá era
o caviar do Vale do Paraíba, que ele degustava devagar enquanto escrevia.