National Geographic - Portugal - Edição 231 (2020-06)

(Antfer) #1
LIDERANÇAPOLÍTICA 73

O ataque contra Patricia Arce reflectiu a profun-
didade das clivagens da política boliviana. Mas
também tornou uma contradição mais clara: a
Bolívia é conhecida por promover a representação
das mulheres no governo nacional e local mas é
um dos lugares da América do Sul mais perigosos
para as mulheres. O país apresenta a mais elevada
taxa de feminicídio, ou seja, de mulheres assassi-
nadas devido ao seu género, do continente: 2,3 as-
sassínios por cada 100.000 mulheres em 2018. Em
2019, foram mortas 117 mulheres. Estima-se que
70% das mulheres locais tenham sido vítimas de
maus-tratos físicos ou abusos sexuais.
É por isso que, na opinião de Patricia Arce e de
muitas outras mulheres da política boliviana, o
ataque foi parcialmente fomentado por uma cul-
tura machista, uma versão rancorosa do precon-
ceito generalizado que afecta as líderes femininas
em todo o mundo, incluindo em locais como a
Bolívia, onde uma lei de 2010 exige que as mulhe-
res representem, no mínimo, metade de todos os
nomeados para cargos federais, estaduais e locais.
As mulheres ocupam actualmente 53% dos luga-
res da assembleia legislativa nacional.


Patricia Arce suspeita que o ataque foi motiva-
do pelos programas de promoção das mulheres
que defendeu: formação com base em desenvol-
vimento de competências como cestaria e culiná-
ria, com o objectivo de promover a independência
financeira das mulheres. Para alguns homens, es-
ses programas não foram muito populares.
Os detractores de Patricia Arce acusam-na de
utilizar indevidamente recursos públicos para in-
citar a violência. Ela nega. “Há muito machismo
aqui”, diz. “Acho que queriam dar-me uma lição e
fazer de mim um exemplo para as outras.”
Patricia Arce regressou ao seu gabinete, sema-
nas após o ataque, para concluir um mandato que
terminou no dia 20 de Maio de 2020. Numa ma-
nhã quente de Dezembro, sentou-se atrás da se-
cretária. O seu cabelo castanho escuro começava
a crescer. “O medo está sempre presente”, disse.
“Não me sinto protegida aqui.”
As janelas do seu gabinete, cujos vidros foram
partidos durante o ataque, ainda estavam reves-
tidas de pedaços de plástico que insuflavam ligei-
ramente. Imagens de Evo Morales decoravam as
paredes. Não havia fotografias de Jeanine Áñez
Chávez, a sucessora de Morales, que não é apoia-
da por Patricia Arce. “Nós, mulheres, tivemos de
nos esforçar para conquistar um espaço [político]
e não podemos desistir dele”, disse em lágrimas,
referindo-se ao seu cargo como presidente da câ-
mara. “Se eu desistir e os deixar ganhar, que men-
sagem estou a transmitir às pessoas, às mulheres,
a quem digo para seguirem em frente?”

A


O LONGO DA HISTÓRIA, as mulhe-
res que procuraram alcançar o
poder político foram frequente-
mente confrontadas com resis-
tência – da mera difamação ao
assassínio. As mulheres fizeram
avanços consideráveis, mas con-
tinuam a deparar-se com barrei-
ras familiares. Em mais de metade dos países do
mundo, as quotas de género nas assembleias legis-
lativas garantem actualmente a participação política
formal das mulheres. No entanto, estas quotas têm
as suas limitações e, nalgumas democracias liberais,
há quem as critique como discriminatórias e anti-
democráticas por minarem o princípio do mérito,
favorecendo as mulheres em detrimento dos
homens unicamente devido ao género. À seme-
lhança da Bolívia, as quotas não impedem que as
críticas dirigidas às mulheres em cargos públicos
assumam um tom desagradável e sexista.
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