O Estado de São Paulo (2020-06-07)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-16:20200607:
A16 DOMINGO, 7 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


UGO


GIORGETTI


Esportes


Ciro Campos
Guilherme Amaro
Wilson Baldini Jr.


A relação das torcidas organi-
zadas com a política no Brasil
começou cinco décadas an-
tes dos protestos registrados
domingo passado na Avenida
Paulista, quando cerca de 5
mil pessoas participaram de
um ato contra o governo Jair
Bolsonaro. A mobilização foi
autointitulada pró-democra-
cia e antifascista. Teve briga.
Boa parte dos manifestantes
pertencia à Gaviões da Fiel,
maior torcida do Corinthians,
fundada em 1969 para derrubar
o então presidente Wadih Helu,
que comandou o clube paulista
por cinco mandatos seguidos,
de 1961 a 1971, em um período
marcado pela ditadura militar.


Hoje, mais uma vez estão pre-
vistas manifestações pelo País,
em um movimento que volta a
expor à sociedade a ligação entre
as torcidas e a política. Embora o
ativismo desses grupos esteja na
gênese ligado ao futebol, histori-
camente a formação dessa clas-
se sempre esteve relacionada a
pautas políticas. Questões como
a ditadura militar e as eleições
diretas foram algumas das ban-
deiras levantadas no passado.
“A Gaviões surgiu como opo-
sição dentro do Corinthians,
que era integrante do regime mi-
litar, aliado da Arena (partido),
um símbolo da ditadura. Isso
faz com que a Gaviões já tenha
um posicionamento crítico em
seu nascedouro”, diz Flávio de
Campos, professor de história
na USP e integrante do Departa-
mento de História e coordena-

dor do Ludens (Núcleo interdis-
ciplinar de pesquisas sobre fute-
bol e modalidades lúdicas).
Para a professora da Uni-
camp e autora do livro Futebol e
Violência, Heloísa Reis, a própria
rotulação das organizadas co-
mo entidades marginais desen-
cadeou o desejo nesses grupos
de mostrar um posicionamento
político. “As torcidas nasceram
no futebol como um movimen-
to de jovens em prol de questões
sociais maiores, porém acaba-
ram relacionadas à violência. Ao
se sentirem estigmatizadas e
acuadas por leis e até pela ima-
gem negativa, as organizadas vi-
ram o movimento como uma
forma de extravasar”, pontua.
Um dos atos ligados à políti-
ca mais marcantes nas arqui-
bancadas brasileiras ocorreu
em 11 de fevereiro de 1979, no

Morumbi, quando a Gaviões
abriu uma faixa com os dizeres
“Anistia ampla, geral e irrestri-
ta” antes da partida contra o
Santos, pelo Paulistão. A Lei de
Anistia foi sancionada em 28 de

agosto daquele ano, beneficiou
mais de cem presos políticos e
permitiu o retorno de 150 pes-
soas banidas e duas mil exiladas


  • foi um passo importante para
    o fim da ditadura no Brasil.


Quem participou, relembra
do ato com orgulho. “O povo é
quem sofre nesses momentos
difíceis. Não existe nada organi-
zado. O que existe é uma revol-
ta com as coisas erradas que
acontecem. Tivemos 13 mortes
de covid-19 (dentro da Ga-
viões). Muitos são ambulantes,
microempresários que estão
passando por dificuldades. E o
que o governo está fazendo por
eles? Nada. Por isso resolvemos
ir para a Paulista”, afirmou Chi-
co Malfitani, 70 anos, um dos
doze fundadores da Gaviões.
Outro episódio ocorreu en-
tre 1982 e 1983, quando a Demo-
cracia Corintiana, instituída
por Sócrates, Casagrande e Wla-
dimir no Corinthians, teve o
apoio das organizadas e culmi-
nou com os comícios no Vale do
Anhangabaú apresentados pelo
narrador Osmar Santos. “Isso
tem uma fronteira com aquilo
que acontece dentro do clube,
de prática democrática, e o res-
paldo que a principal torcida
deu a esse processo, tudo isso
em um contexto de transição pa-
ra a democracia. Logo após, te-
mos a campanha da Diretas em
84”, associa o professor Flávio.
A partir da década de 1990, o
próprio prestígio das organiza-
das fez com que partidos políti-
cos as procurassem, todas elas.
“É preciso citar o uso político
que os partidos fizeram e fazem
com as torcidas organizadas. Al-
guns membros foram cabos elei-
torais em eleições como moeda
de troca pelo pagamento de ca-
ravanas e churrasco, e mais re-
centemente com a cooptação
de que alguns membros se tor-
nassem candidatos”, disse ao
Estadão a professora Heloísa.
A aproximação entre organi-
zadas e protestos políticos vol-
tou a ganhar força em 2013. O
gasto público para organizar a
Copa das Confederações e a Co-
pa do Mundo, e aumentos proi-
bitivos, motivou passeatas a
partir de junho daquele ano. “A
agenda política se articulou
com a agenda esportiva, com os
megaeventos, como Copa das
Confederações, Mundial, Jogos
Olímpicos e Paralímpicos”, afir-
mou o professor da USP.
É neste período que as organi-
zadas começam a caminhar “la-
do a lado” com partidos políti-
cos, afirma Heloísa. “Já tivemos
casos de torcida se manifestan-
do em estádio contra impeach-
ment, favorável a políticos, fa-
zendo campanhas...”
No entanto, apesar de diver-
sos movimentos dentro de dife-
rentes torcidas estarem em sin-
tonia sobre pautas políticas,
não há um discurso unificado
entre as partes. As organizadas
preferem não se associar dire-
tamente ao movimento e pre-
gam que as instituições são
neutras. “A maioria dos asso-
ciados não tem a intenção de
ser protagonista em questões
políticas. Os movimentos das
torcidas não são homogêneos.
São associações numerosas e
variadas”, comenta a professo-
ra Heloísa.

E-MAIL: [email protected]

]O governador do Rio, Wilson Wit-
zel (PSC), publicou decreto que
flexibiliza as regras de isolamen-
to no Estado, permitindo o retor-

no dos jogos de futebol. Eventos es-
portivos de alto rendimento passam a
ser autorizados, desde que realizados
sem público e respeitando os protoco-
los de higienização. Dessa maneira, o
Carioca fica mais perto de oficializar
uma data para ser retomado.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


N


ão é sempre que torcedores
organizados conseguem me
entusiasmar. Conseguiram
domingo passado na Avenida Paulis-
ta. Aliás, onde escrevi torcedores or-
ganizados, deveria ler-se torcedo-
res desorganizados, já que as direto-
rias das quatro maiores torcidas de
São Paulo deixaram completamen-
te a critério de seus integrantes par-
ticipar ou não da manifestação.
Isso é importante porque a partir
daí a reunião de torcedores passou a
pertencer não a uma torcida, mas à
consciência individual de cada parti-
cipante. A democracia partiu já des-

sa decisão. De fato, pouco se distinguia
a proveniência da maioria dos torcedo-
res. O fato é que se viu, pela primeira
vez, um protesto que vinha diretamen-
te das ruas. Aliás, não se tratava de um
protesto, mas de uma reivindicação.
Não era uma manifestação contra,
mas pró. E tinha uma só exigência: de-
mocracia. Essa foi a palavra mais ouvi-
da na Avenida Paulista no domingo. E
ouvida, por uma vez, filtrada pelo som
rouco das vielas e becos. Vozes impu-
ras e delirantes das quebradas, com o
sotaque inconfundível dos estádios. A
palavra democracia não vinha cantada,
mas berrada. Aos urros, como se esti-

vessem ali pertinho, no velho Pacaem-
bu, os manifestantes faziam soar sua
proclamação. Quando começaram a
marchar com a agressividade de todas
as torcidas nas grandes comemorações
antes ou depois dos jogos, realmente
deram medo. Mas estavam agredindo
alguém? Estavam falando muito alto?
Gosto muito de manifestações paci-
ficas. Gosto quando vejo pais levando
crianças pela mão e mães sorridentes,
felizes de estar ali se manifestando.
Mas devo confessar que não sou nem
um pouco indiferente quando vejo
realmente uma manifestação de outra
espécie, com outra gente, manifesta-
ções de outras épocas, que mostram
que ninguém está ali para brincar, mas
que a coisa é séria.
Quem sai para a rua em eventos co-
mo esse deve saber que tudo pode
acontecer. Mesmo as mais pacíficas
manifestações podem acabar na trucu-
lência e na baderna. Assim eu pensava
vendo aquela turba caminhando pela
Paulista carregando uma enorme faixa

onde estava escrito DEMOCRACIA.
Devo fazer uma confissão pessoal.
Por um momento me senti orgulhoso
de ser parte da imprensa esportiva, de
escrever sobre futebol, de poder consi-
derar, portanto, minha gente, aqueles
que faziam estremecer a avenida com
seus berros. Deu o que tinha que dar e
não me causou surpresa.
A Polícia Militar estava ali, e todos
sabem que PM e torcedores de futebol
não se amam exatamente.
Um acontecimento trivial, de pou-
cas, ou nenhuma, consequências de-
sencadeou e, desculpem o termo, co-
roou a manifestação. A PM aproveitou
o incidente e partiu para cima dos torce-
dores. Não acredito, ou por outra, não
há nenhuma prova que a PM tenha ata-
cado os torcedores por motivos políti-
cos. Afinal, quem não quer democra-
cia? Hoje neste País são todos democra-
tas, até os que pretendem destruí-la. A
PM foi para cima talvez por velhas con-
tas a ajustar, desencontros anteriores,
rixas ancestrais das arquibancadas, por-

que, afinal, sempre foi assim.
Os torcedores sabiam o que ia
acontecer, ouso até dizer que que-
riam que acontecesse. Porque há
coisas mal resolvidas entre PMs e
torcedores. Eles não se surpreende-
ram nem um pouco com a ação da
PM. Sabiam como lidar com ela, fo-
ram recuando aos poucos, ateando
fogo em caçambas, usando seus fo-
guetes, pedras e o mais que tinham.
A PM, com suas bombas de gás e
seus escudos, tentava fazê-los sair
da avenida caminhando devagar em
direção dos que recuavam, sem nun-
ca atacar definitivamente.
Coisa comum, ninguém se feriu
gravemente. Ou muito me engano
ou os torcedores voltarão a sair, ago-
ra em maior número. Feitos os devi-
dos reparos à truculência de ambas
as partes, assistimos a uma verdadei-
ra manifestação pacífica, que não
deixa vítimas nem quebradeira, mas
é coisa séria, não tenham dúvidas. O
futebol se manifestou, finalmente.

ALEXANDRE VIDAL / FLAMENGO - 16/2/

RIO, DE GABIGOL, LIBERA
TREINAMENTO E FUTEBOL

HISTÓRIA

Organizadas:


amor esportivo e


interesse político


Heloísa Reis
PROFESSORA DA UNICAMP

Flávio de Campos
PROFESSOR DA USP

‘Ao se sentirem
estigmatizadas e
acuadas por leis e
imagem negativa, as
organizadas viram
o movimento como
forma de extravasar’

‘A agenda política
se articulou com
a esportiva, com
os megaeventos,
como Copa das Con-
federações, Mundial,
Jogos Olímpicos’

TABA BENEDICTO / ESTADÃO–31/5/

Copacabana. No Rio, torcedores também se manifestaram

VANESSA ATALIBA/ZIMEL PRESS–31/5/

Protestos. Relação das torcidas com a política é antiga, passou


pela luta contra a ditadura e voltou a ganhar força nos últimos anos


Paulista.
Avenida foi
palco de
protesto e
de confronto
no último
domingo

Torcedores do Brasil

Free download pdf