O Estado de São Paulo (2020-06-07)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-8:20200607:
H8 Especial DOMINGO, 7 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Leandro Nunes
Roberta Picinin


E


ntrar na faculdade, ter o
rosto pintado pelos vete-
ranos, participar das pri-
meiras aulas e festas. A transi-
ção também pode incluir mu-
dar de cidade, morar longe dos
pais pela primeira vez e conquis-
tar mais independência. Mas,
pelo menos por enquanto, es-
sas tão sonhadas experiências
para os calouros foram inter-
rompidas pela pandemia.
Em vez do contato com pro-
fessores e colegas, aulas online.
E muitos dos que haviam saído
de casa acabaram voltando, pa-
ra se preservar da doença. Mu-
danças bruscas que vêm causan-
do decepção e ansiedade. Senti-
mentos normais em situações
assim, segundo especialistas.
Mas o momento é de ter paciên-
cia e resiliência para lidar com
as dificuldades pelas quais to-
dos estão passando.
Aprovada em Enfermagem
no Centro Universitário Barão
de Mauá, Marina Galina Moreli,
de 18 anos, viveu um pouco a ex-
periência com-
pleta de passa-
gem para a vi-
da adulta. Ha-
via acabado de
se mudar da ca-
sa dos pais, em
São Paulo, pa-
ra Ribeirão
Preto, onde fica a faculdade.
“Quando a gente chega à maiori-
dade, quer buscar independên-
cia, tocar os próprios planos e
concretizar sonhos”, diz.
Só que a novidade durou pou-
co. As aulas não puderam conti-
nuar por muito tempo e ela teve
de voltar a São Paulo. “Todo
mundo da turma ficou um pou-
co triste, porque imaginava que
o primeiro ano seria como o de
todo estudante”, afirma Mari-
na. Agora, ela se dedica aos estu-
dos na plataforma online, mas
avalia que o curso de Enferma-
gem se faz na experiência. “É
um pouco mecânico estudar as-
sim, sinto que algumas dúvidas
poderão ser solucionadas, mas
o online tem limites.”
Na opinião de Valéria Resen-
de, psicóloga organizacional da
Companhia de Estágios, sentir-
se chateado e mesmo triste


quando essa quebra de expecta-
tiva acontece é até inevitável.
“O melhor a se fazer é buscar
reconhecer esse sentimento,
compreender de onde surge, o
que provocou e aceitar”, afir-
ma. “Somos humanos e é total-
mente compreensível nos sen-
tirmos assim.”
Ela acrescenta que voltar pa-
ra a casa dos pais não precisa
significar a interrupção do ciclo
de independência do jovem. “É
possível encarar não como um
retorno, mas como parte do pro-
cesso de amadurecimento”,
aconselha a psicóloga. “Para is-
so, recomendo que o jovem as-
suma atitudes independentes e
responsáveis, assim como faria
fora de casa.”
Sócia da consultoria House
of Feelings, Lísia Prado acres-
centa que o universitário pode
pensar no lado positivo deste
breve retorno para casa. “Pode
ser uma oportunidade de recar-
regar as baterias.”

Decepção. Luiza Silva Leite,
de 19 anos, também havia come-
çado 2020 com alta expectati-
va. As aulas na
Faculdade de
Direito de São
Bernardo do
Campo, no
ABC, repre-
sentavam a
realização de
um sonho. Ela
também estava animada com a
experiência universitária como
um todo. “Tive um dia de trote e
três semanas de aula antes da
quarentena”, diz. “A primeira
festa seria para integração, no
fim de março, e foi cancelada.”
A universitária conta que não
tem como não se sentir decep-
cionada com a situação. “De-
pois dos dois anos de cursinho,
quando eu me matriculei na fa-
culdade estava muito feliz. Esta-
va participando da Atlética e
pensando em entrar para o cen-
tro acadêmico. Mas a pandemia
fez com que tudo precisasse es-
perar um pouco. Foi uma que-
bra de expectativa.”
A jovem continua se manten-
do engajada com a universida-
de, mesmo a distância. Como re-
presentante de sala, uma vez
por semana tem reuniões com
os tutores da turma. “Mas sinto

que há um sentimento geral de
decepção, gente pensando em
trancar o semestre”, diz Luiza.
Ela não quis trancar, mas se
preocupa com o impacto na sua
formação. “O primeiro ano é a
base de praticamente tudo”, ex-
plica. “Estou ansiosa para que
tudo volte ao normal e para
aproveitar o que a faculdade
tem a me oferecer.”
A psicóloga clínica e especia-
lista em orientação profissional
e de carreira Verônica Lemos
diz que cada pessoa vem sentin-
do este momento de forma dife-
rente. Há os que procuram man-
ter a motivação, como Luiza.
Outros se sentirão mais desani-
mados. “Alguns farão planos e
outros vão desistir deste ano le-
tivo”, explica. “Uma dica que po-
de ajudar é escrever, colocar no
papel os sentimentos e emo-
ções para melhor organizar os
pensamentos e não se esquecer
das razões pelas quais a pessoa
entrou na faculdade, lembrar
dos seus sonhos e objetivos e
fazer disso uma motivação.”

No mesmo barco. Especialista
em orientação profissional e
gestor escolar, Bruno Ferrari
deixa claro que este é um mo-
mento que requer calma. Na
opinião dele, é muito cedo para
imaginar, por exemplo, que a
pessoa não vai conseguir acom-
panhar o curso presencial só
porque está tendo dificuldade
com o conteúdo online.
“No começo da faculdade, en-

tramos em
contato com um
mundo de conhecimen-
tos muito maior do estávamos
acostumados ou, às vezes, mais
complexo do que imagináva-
mos”, explica. “O nível superior
também nos exige mais autono-
mia e autogestão do que possi-
velmente tínhamos no ensino
médio. É natural nos sentirmos
um pouco perdidos.”
Ferrari recomenda que os uni-
versitários busquem apoio em
professores e coordenadores.
“Peça ajuda e orientação. E a
não ser que fique muito claro
para você que este não é o seu
curso, evite tomar a decisão de
abandoná-lo nesse momento.
Por enquanto, tenha calma,
com você e com o mundo. Esta-
mos todos no mesmo barco.”

Quebra de expectativa. Calou-
ra de Marketing no câmpus Mo-
rumbi do Centro Universitário
FMU, Larissa Kaori Mabu, de 23

anos, conta que a transição para
o sistema online foi rápida e efi-
ciente. “Recebemos um comu-
nicado da faculdade, dizendo
que as aulas presenciais seriam
suspensas, e tempos depois o
curso já tinha um sistema dispo-
nível de aulas online.”
Mesmo com a solução acadê-
mica, a sensação de quebra de
expectativa existe. Ela conta
que estava integrada com a clas-
se e já fazia parte de grupos de
trabalho. “A gente acha que vai

tocar os planos e que
eles vão dar certo,
quando acontece algo
inesperado.”
Por mais que não se esteja en-
contrando com os colegas, o vín-
culo com eles também deve ser
mantido. De acordo com espe-
cialistas ouvidos pelo Estadão,
esse contato é muito válido e
pode até ser mais intenso, seja
em reuniões online para discu-
tir trabalhos ou provas, ou até
mesmo nos momentos de lazer,

D


epois de se formar em
Engenharia Civil pela
Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Hen-
rique Lucena entrou ainda jo-
vem no magistério, começou a
dar aulas em uma universidade
e depois construiu uma carrei-
ra paralela na área de seguros.
“Quando concluí meu curso,
no final da década de 1970, ha-
via um mercado de trabalho pro-
pício para novos profissionais.
Mas isso não significa que não
passei por fases desafiadoras ao
longo da carreira. Convivi, por
exemplo, com cenários de infla-
ção, em que meus alunos ques-
tionavam se fazia sentido conti-

nuar pagando uma universida-
de”, conta. “Todo mundo passa
por invernos na vida, não tem
como fugir disso. É preciso se-
guir em frente, o show tem de
continuar.”
Para os jovens que estão des-
motivados com o contexto de
2020, sem saber se escolheram
a profissão adequada para um
momento tão imprevisível e
um futuro ainda bastante incer-
to, ele dá um conselho: “A moti-
vação está muito relacionada à
escolha da profissão, se a deci-
são foi certa. Eu, por exemplo,
nunca exerci de fato a função
de engenheiro civil, na qual me
formei, mas encontrei outros
caminhos. Se você gosta do tra-
balho que escolheu, a motiva-
ção virá”. / G.W.

‘É NATURAL NOS
SENTIRMOS PERDIDOS
NESTE PERÍODO DA VIDA’,
AFIRMA ESPECIALISTA

Estudantes que acabaram de entrar na universidade contam como


driblam a decepção com a distância e a ansiedade para voltar às aulas


CALOUROS


PLANOS SUSPENSOS


NO PRIMEIRO ANO


Henrique Lucena, 73 anos
Professor e empresário

A confirmação do adiamento
do Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem) nem não foi mo-
tivo de alívio para muitos estu-
dantes. A expectativa de passar
pela avaliação, longe do auxílio
de professores e da sala de aula,
já provocava certa apreensão.
Agora, sem data definida, o

Enem parece estar fora do alcan-
ce para Paulo Henrique da Cruz
Pimentel, de 17 anos. Desde o
início da quarentena em São
Paulo, o estudante de terceiro
ano da Escola Estadual Domin-
gos Milano, em Itaquaquecetu-
ba, está sem aulas. “Por enquan-
to, só faço as atividades que os
professores enviam.”
Ele conta que, nas primeiras
semanas, a escola tentou usar a
plataforma Centro de Mídias
SP, iniciativa da Secretaria da
Educação do Estado de São Pau-
lo para ampliar a formação de
professores e alunos. “Não deu

muito certo. Tinha muitos pro-
blemas, às vezes de conexão e
áudio”, afirma.
A mudança brusca na rotina e
no aprendizado também afetou
a saúde de alguns colegas, conta
Gabriela Victorino Alves, de 17
anos, colega de turma de Paulo.
“Estamos na etapa final da for-
mação, e não sinto que estamos
prontos para encarar o Enem e
entrar na faculdade. Soube de
muitos colegas que tiveram cri-
se de ansiedade, com medo do
que vai acontecer.”
Além dos estudos, a atenção
dos profissionais tem se volta-
do à saúde mental dos alunos,
como explica o coordenador pe-
dagógico Dionei Andreatta.
“Muitas famílias sofreram im-
pactos econômicos e o estudan-
te do ensino médio ainda deve
definir o seu futuro, em um mer-
cado que segue ameaçado”, diz
Andreatta. “Esse clima de incer-
teza é prejudicial, provocando

Vidas em Quarentena*


Reviravolta. Marina passou em Ribeirão, mas teve de voltar para a casa dos pais, em SP


‘TODO MUNDO PASSA POR INVERNOS’


lOs formandos de 2020 estão
enfrentando um cenário totalmen-
te atípico e inesperado. Mas e os
profissionais de outras gera-
ções? Por quais desafios eles
passaram após a faculdade?
Miguel Perosa, professor de
Psicologia da PUC-SP, explica
que, independentemente da pan-
demia, o começo da vida profis-
sional é marcado por uma ansie-
dade muito grande e uma tentati-
va de atender às expectativas. “É
um momento de superação. Você
não sabe se vai dar conta do reca-
do e tem medo de não correspon-
der. São sentimentos que exis-
tem em qualquer cenário”, diz.


É interessante que, neste mo-
mento, essa nova geração de jo-
vens se inspire nos veteranos,
explica Sidnei Oliveira, escritor e
consultor de carreira. “Todos os
jovens em diferentes décadas no
passado tiveram seus desafios e
crises, e essa também não vai
ser a primeira crise que essa ge-
ração vai enfrentar”, diz. “É im-
portante olhar para quem já pas-
sou por essas experiências. Tal-
vez a solução seja diferente, por-
que cada período teve sua especi-
ficidade, mas a atitude para che-
gar à solução independe da situa-
ção: envolve posturas como equi-
líbrio e tomar frente para resol-
ver o problema.”
Confira ao lado relatos de pro-
fissionais de diferentes gerações
que passaram por dilemas e su-
peraram dificuldades no início da
carreira. / GIOVANNA WOLF

VALERIA GONCALVEZ/ESTADÃO

ACERVO PESSOAL

Desafio. Henrique se formou em tempos de inflação alta

Alunos temem
despreparo para fazer
exame, que ainda não
tem data definida para
acontecer neste ano

APREENSÃO COM


O ENEM AUMENTA


NA PANDEMIA


‘CADA GERAÇÃO


LIDA COM AS


SUAS CRISES’

Free download pdf