O Estado de São Paulo (2020-06-08)

(Antfer) #1

Guilherme Sobota


Sala de espera do Hospital Emí-
lio Ribas, área nobre de São Pau-
lo, primeiras semanas da pande-
mia no Brasil. Dois cinegrafis-
tas abordam uma mulher, re-
cém saída da UTI, recuperada
da covid-19. Agora, quem está lá
é seu marido, entubado. Ela ora
por ele, ambos são pastores.
Dias depois, a mesma dupla de
cinegrafistas, com a ajuda de
uma enfermeira e através do vi-
dro de proteção, fala com o pas-
tor, desentubado e ainda nos
primeiros minutos de sua nova
consciência. Ele então...
Na verdade, para o leitor sa-
ber o que acontece de fato nessa
história – real – terá que aguar-
dar a conclusão de um projeto
cinematográfico em andamen-
to. Desde o dia 6 de abril, a du-
pla de documentaristas Gusta-
vo Laga Villanova e Cauê Ito re-
gistra imagens do dia a dia do
Instituto de Infectologia, um
dos principais pontos de trata-
mento da covid-19 no Brasil, co-
mo parte de um documentário
independente, ainda sem título
definitivo ou apoio fechado de
produtoras ou empresas.
O título provisório é A Curva.
Pois foi essa palavra, adição ao
vocabulário cotidiano geral nes-
te mundo em pandemia, uma
das motivações iniciais para o
projeto, cujo ponto de ignição
se deu com as primeiras conver-
sas públicas sobre a demissão
do ex-ministro da Saúde, Luiz
Henrique Mandetta. Ainda com
previsões incertas sobre o futu-
ro da doença, mas com os cien-
tistas já em alerta, a dupla come-
çou a alimentar a ideia.
Não sem uma carga de cora-
gem. Mesmo seguindo à risca
protocolos de segurança, o tra-
balho envolve riscos pessoais.
O Emílio Ribas apareceu como
oportunidade por conta de uma
ligação familiar do fotógrafo (I-
to) com a dra. Luiza Keiko, du-
rante anos supervisora de equi-
pe técnica em saúde do Institu-
to, reconhecida pelos pares co-
mo uma das melhores dermato-
logistas do País. Feita a ponte, a
dupla decidiu agir rápido, utili-
zando equipamentos pessoais e
emprestados para documentar
aquele que é, agora vemos com
mais clareza, o maior incidente
de saúde pública dos últimos
100 anos.
“Eu sabia que o Cauê costuma
se aventurar nessas situações,
então foi a primeira pessoa em
quem pensei”, conta Villanova,
por videoconferência. “Minha
dúvida era: como convidar ou-
tra pessoa, se qualquer um pode
ser um vetor da doença? Mas ele
estava interessado. Pareceu que
dentro do Emílio Ribas seria
uma troca justa, porque não co-
locaríamos ninguém em risco,
parecia um lugar viável para a
gente se enfiar”, diz – Villanova
é diretor de cena na Pródigo Fil-
mes, e possui mais de 10 anos de
experiência na direção de co-
merciais. Em 2018, dirigiu tam-
bém um episódio da série docu-
mental Outros Tempos – Jovens
para a HBO Latin America, so-
bre encontros digitais.
O fotógrafo na ocasião tam-
bém foi Ito, cujo currículo com-
preende diversas colaborações
para veículos de circulação na-
cional, como a Folha de S. Paulo
e a Vogue, bem como trabalhos
na Conspiração e para o His-
tory Channel, na série Zona de
Conflito, quando viajou para a Sí-
ria filmar incursões do fotógra-
fo de guerra Gabriel Chaim.
“Escrevemos uma carta de in-
tenções para o hospital, mas até
aquele momento não havia tem-
po para pesquisa, não existia exa-
tamente um conceito para o doc,
porque os fatos ainda estão acon-
tecendo”, conta o diretor de foto-
grafia. “A ideia era primeiro ga-


rantir o acesso, e aí pesquisar e
encontrar personagens. Mas
buscamos documentar algo que
impactou o comportamento das
pessoas no mundo inteiro.”
Quase com 60 diárias – entre-
vistando médicos, enfermeiras,
residentes, pacientes de diferen-
tes origens e profissões, captan-
do imagens no vaivém do hospi-
tal mas também do dia a dia da
cidade – a dupla conta que o pro-
jeto vai tomando forma.
“O documentário começou
de uma maneira, e vai aos pou-
cos se transformando”, diz Vil-
lanova. “Estamos acompanhan-
do personagens, dramas no dia
a dia, e apesar de já termos al-
guns caminhos e imaginar o
que o documentário vai comuni-
car, não sabemos o desfecho
dessas histórias.”
Com o contorno de incertezas
fabricado pela pandemia, o dire-
tor conta que sua busca se con-
centra na história das pessoas
em meio ao
contexto.
“Queremos en-
xergar o que é a
profissão de
saúde, enxer-
gar quem está
lá dentro. Tem
gente que sen-
te um dever,
que conseguiu
o emprego ago-
ra, que estava
para se aposen-
tar, estamos
entendendo.
Cada um vive
de um jeito nesse momento. O
que acontece com uma mãe de
família dentro da pandemia? São
pessoas que possuem uma no-
ção de humanidade, de ajuda ao
próximo e compromisso muito
particular, isso está marcante.”
O olhar sobre a situação do
hospital e dos profissionais foi
bem recebido por uma parte da
equipe de funcionários e médi-
cos, que viu no interesse dos ci-
neastas uma ocasião favorável
também para o Emílio Ribas,
fundado há 140 anos e referên-
cia nacional no tratamento de
outras epidemias históricas, co-
mo as de varíola, febre amarela,
meningite (ocultada pela dita-
dura militar nos anos 1970) e
aids. “Além de toda essa histó-
ria, até hoje o hospital é referên-
cia do SUS para doenças infec-
ciosas, cujos pacientes carre-
gam um peso com o termo ‘in-
fectado’. Como o hospital aca-
ba cuidando dos excluídos da so-
ciedade, no pronto socorro apa-
rece todo mundo”, conta Ito.
“Me sinto honrado por essas

pessoas confiarem suas histó-
rias na gente.” O diretor com-
plementa: “Existem histórias
se cruzando, porque uma gera-
ção de profissionais que tratou
do HIV agora enfrenta outra epi-
demia, mais experiente. Essa
conversa nas redes sociais de
que a epidemia expõe a desigual-
dade no País... Eles já sabem dis-
so há muito tempo”.
O universo dos pacientes
igualmente é abordado pela du-
pla, interessada em estender a
captação para outros locais da
cidade, como Paraisópolis. “A
triagem no hospital é muito in-
teressante, encontramos pa-
cientes espontâneos, dispostos
a falar”, diz Ito. O interesse, po-
rém, é diferente do jornalístico,
mais afeito às notícias do mo-
mento. “Nesse tempo lá, cria-
mos laços com as pessoas. O
mais interessante tem sido a vi-
da das pessoas em relação à pan-
demia”, garante o fotógrafo.
Apesar da
abordagem
pensada para
o cinema, a du-
pla também
pretende apro-
veitar parte
do material
em forma de
pílulas para o
projeto Solos,
lançado esta
semana nas re-
des (@proje-
to.solos), vol-
tado para nar-
rativas inde-
pendentes para a web.
Uma das inspirações recentes
do diretor – cinéfilo e entusiasta
do cinema dos anos 1980 – é Wer-
ner Herzog. “Assisti a uma pales-
tra online em que ele diz: ‘tudo o
que você precisa para fazer um
documentário é um fotógrafo e
um microfone’. Aí, eu disse: obri-
gado, Herzog, porque sempre
achei que precisava de mais”,
conta. Disponíveis aos aconteci-
mentos, eles não têm certeza de
quanto tempo o projeto vai du-
rar, “por mais que todo mundo
esteja sedento por conteúdo”.
“A gente brinca que tudo vi-
rou narrativa. Ficar em casa, ir
trabalhar, até apenas existir. Cla-
ro que dá vontade de contar um
monte de histórias dentro des-
se lugar. Mas, ao mesmo tempo,
a pandemia afetou as produto-
ras. Estamos ainda buscando fi-
nanciamento”, conta o diretor.
Seja como for, as próximas se-
manas continuarão testemu-
nhas do entusiasmo de dois ci-
neastas, mergulhados num pro-
jeto de enorme relevância.

‘ IMAGINAMOS O QUE
VAMOS COMUNICAR, MAS
NÃO TEMOS O DESFECHO
DESSAS HISTÓRIAS’

‘BUSCAMOS REGISTRAR
ALGO QUE IMPACTOU O
COMPORTAMENTO DE
TODAS AS PESSOAS’

CÂMERA

NA MÃO

NA


Documentaristas agem rápido e


registram o dia a dia do Hospital


Emílio Ribas na pandemia


QUARENTENA


Dupla. Laga Villanova e Cauê Ito entrevistam profissionais e pacientes no Emílio Ribas

Sobrevivente


Uma entrevista com ‘a bailarina do Holocausto’ PÁG. H8


BBLACK LABELLACK LABEL

Introducing:

Produção. Independente na concepção, projeto ainda busca financiamento e produtora
MARCOS ALONSO

FOTOS: CAUE ITO

Diárias. Cineastas estão
há 60 dias no projeto

%HermesFileInfo:H-1:20200608:H1 SEGUNDA-FEIRA, 8 DE JUNHO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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