O Estado de São Paulo (2020-06-14)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-8:20200614:
H8 Especial DOMINGO, 14 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Aliás,


Livro reúne ensaios do pai da psicanálise sobre a civilização


escritos em meio à ascensão do nazismo na Alemanha


Amanda Mont'Alvão Veloso ]


Já virou rotina o Brasil protago-
nizar algum episódio de falência
das fronteiras entre a normalida-
de e o absurdo. Desprezo à vida,
impunidades, linchamentos e
um estarrecedor patrocínio do
ódio e da mentira enlaçam milha-
res de brasileiros com naturali-
dade. Diferentes campos do sa-
ber oferecem análises às perple-
xidades e amarguras da vida em
sociedade, o que proporciona a
busca de respostas em nomes co-
mo Theodor Adorno, Karl Marx,
Walter Benjamin, Hannah
Arendt, Guy Debord, Sérgio
Buarque de Holanda e Claude
Lévi-Strauss.
Ao oferecer uma chave de lei-
tura psíquica da questão, Freud


garantiu seu lugar no destacado
rol, especialmente com sua pro-
dução do período entreguerras.
Foi nas décadas de 1920 e 30, no-
táveis tanto pelo crescimento
tecnológico quanto pela crise fi-
nanceira e a concomitante as-
censão democrática do partido
nazista, que ele publicou livros e
ensaios como Psicologia das Mas-
sas e Análise do Eu (1921), O Futu-
ro de uma Ilusão (1927), Mal-estar
na Cultura (1930) e Por Que a
Guerra? (1933), conhecidos por
levar as reflexões psicanalíticas
para além da dimensão clínica e
iniciar um frutífero diálogo com
a sociologia, a educação e a histó-
ria. São obras já disponíveis em
português em edições separa-
das que agora receberam nova
tradução diretamente do ale-
mão por Maria Rita Salzano Mo-
raes e estão reunidas no volume
Cultura, Sociedade, Religião: O
Mal-estar na Cultura e Outros Es-

critos (Editora Autêntica).
Também conhecido como O
Mal-estar na Civilização , o texto
que dá nome ao livro ostenta na
opção por “cultura” em vez de
“civilização” a intenção dos edi-
tores e da tradutora de situar a
prevalência do termo “Kultur”
sobre “Zivilisation” nos origi-
nais e, em mesma medida, a recu-
sa de Freud em distinguir cultu-
ra de civilização. A não equiva-
lência dos termos vinha sendo
instrumentalizada pelo discur-
so nacionalista germânico, sen-
do a cultura um atributo dos ale-
mães, em contraposição ao tec-
nicismo civilizatório atribuído à
França e à Inglaterra.
A coletânea traz ainda ensaios
de Pedro Heliodoro Tavares, Gil-
son Iannini, Jésus Santiago e Vla-
dimir Safatle, que abordam as re-
percussões dos escritos freudia-
nos dentre os psicanalistas e
também na vida social. O volu-

me, que oferece ampla discus-
são dos embates entre cultura e
barbárie, serve fartamente à
atualidade. Os textos contem-
plam identificações com lideran-
ças, agrupamentos identitários,
segregação de diferenças, culti-
vo da hipocrisia, efeitos do me-
do, perseguição às diferenças,
submissão à religião, empreendi-
mentos da culpa, o espinhoso la-
ço de obediência e a desumaniza-
ção via linguagem. Uma compila-
ção de combustíveis psíquicos
de hostilidades assustadoras
por não mais estarem sob o abri-
go das ficções distópicas. No en-
saio Considerações Contemporâ-
neas Sobre a Guerra e a Morte
(1915), por exemplo, o leitor po-
de encontrar subsídio para com-
preender a adesão de mentes bri-
lhantes às fake news e outras
mentiras de nosso tempo.
O mal-estar ocupa lugar cen-
tral na coletânea. O ensaio que o
tematiza afirma que o sujeito é
estruturado por uma disputa in-
cessante entre os apelos pulsio-
nais internos, sempre em busca
de satisfação, e a renúncia a es-
sas satisfações imposta pela cul-
tura – entendida como a família,
o Estado, a civilização, as figuras
de autoridade. Essa renúncia
tem um custo caro e de difícil
negociação: é o mal-estar que ca-
da um de nós carrega desde que
se humanizou. Ou seja, o ser hu-
mano luta contra e sofre justa-
mente daquilo que permite sua
inserção na sociedade.
Como o personagem de Ricar-
do Darín no filme Relatos Selva-
gens , que acumula frustrações
exaustivas ao dançar conforme
a música das burocracias esta-
tais, mas depois literalmente ex-

plodem-nas em seu momento
mais autenticamente primitivo
e incivilizado. O peso da renún-
cia sustenta, muitas das vezes,
os arranjos sociais destrutivos
que nos são tão dolorosamente
familiares. Intimidades, portan-
to, são naturalmente grotescas,
e então saudamos o grande ad-
vento da separação entre o públi-
co e o privado. E da lei, que esta-
belece um solo minimamente
comum para as coexistências. O
que não quer dizer que a cultura
não seja provedora de recursos
capazes de aplacar a angústia e
promover prazer, alegria, inspi-
ração, anestesia e outros preen-
chimentos à miséria humana.
Frequentemente referidos co-
mo “textos de sociedade” ou
“textos da cultura”, esses en-
saios são lidos por alguns psica-
nalistas como externos à clínica,
como se respondessem a outras
indagações sobre o humano e
não servissem à prática analíti-
ca. Mas a própria leitura desmon-
ta esta tese: à exceção de A Moral
Sexual Cultural e a Doença Nervo-
sa Moderna (1908), todos trazem
a dissolução da separação entre
o que diz respeito à psicologia
individual e aquilo que evoca a
relação com coletivo e o mundo,
demarcando uma subjetivação
que só é possível porque há um

outro com quem o Eu se relacio-
na. Logo se vê que a singularida-
de, tão cara a Freud em toda sua
teoria e prática analíticas, não po-
dia prescindir dos arranjos do
ser junto à sociedade. Quando re-
gistrou as feridas abertas da vida
em comum, o autor acabou
criando uma gramática para o
sombrio que nos habita.
Os ensaios reafirmam um ho-
mem em constante desarranjo
consigo e com o mundo. O mal-
estar pertence, portanto, a todas
as épocas. Neste sentido, o ser
humano está muito mais acostu-
mado ao infortúnio do que à feli-
cidade. E, ainda assim, há um es-
tímulo para que se coloque o so-
frimento para fora como um
apêndice desagradável. A persis-
tência de depressões e ansieda-
des em nosso tempo não deixa
dúvidas de que elas precisam ser
pensadas a partir da intimidade
com o desprazer. Freud nunca
sugeriu que descartássemos nos-
sas contradições internas; pelo
contrário, era a partir delas que
podíamos encontrar o outro e su-
portar coexistências.
Ainda que sejam alvos da de-
manda por respostas ou toma-
dos como panfletos por revolu-
ções, esses escritos constituem
mais provocações do que tentati-
vas de predizer o futuro.
Expõem, com incômoda fran-
queza, o nascedouro das turbu-
lências interiores. Mas também
convidam à formação de com-
promissos coletivos que acomo-
dem o desassossego de cada um.

]
É PSICANALISTA, JORNALISTA E
MESTRANDA EM LINGUÍSTICA
APLICADA PELA PUC-SP

Psicologia*


ANALISA TENSÃO ENTRE


INDIVÍDUO E SOCIEDADE


FREUD


Praticamente contemporâneo
à psicanálise, o cinema notavel-
mente veste a contribuição da
cultura às “impaciências da al-
ma consigo mesma”, como
bem dizia o Bernardo Soares de
Fernando Pessoa. De gêneros
distintos como o drama, a fanta-
sia ou a comédia podemos ex-
trair a experiência prazerosa,
sublimatória ou enternecida
que é capaz de comover, inspi-
rar e provocar sensações lidas
pelo cérebro como felicidade.
Mas o cinema é também uma
arte familiarizada com o des-


concerto, a ponto de recusar
propostas apaziguadoras e in-
vestir em leituras do mal-estar.
É nesta dimensão de imagem-
furo, termo cunhado por Tânia
Rivera, que o mundo heterogê-
neo pode aparecer em suas fis-
suras e, com ele, um sujeito tão
impotente, dividido e defeituo-
so quanto. Por identificação, te-
mos aí a possibilidade de reco-
nhecermos, em narrativas e per-
sonagens, o que não cai bem
com a imagem que fazemos de
nós mesmos; é o desprazeroso
infamiliar de que tanto tenta-
mos escapar.
A julgar pela contemporanei-
dade, o mal-estar nas telas é es-
pecialmente prolífico. Recente-
mente as láureas de arte e entre-
tenimento, representadas pe-
los festivais de cinema autoral e
pelo Oscar, coincidiram ao dar

o prêmio máximo ao sul-corea-
no Parasita , cuja narrativa con-
voca o espectador a sair de uma
posição supostamente indife-
rente ao mal-estar da desigual-
dade social. Em um desses feli-
zes encontros entre arte e popu-
laridade, o filme colocou na pau-
ta do dia as complexas relações
sociais tecidas dentro de siste-
máticas financeiras profunda-
mente injustas. O que há em ca-
da cidadão que faz com que ele
sucumba à exploração e à desu-
manização?
Em retrospectiva, Parasita
sublinha uma sequência de qua-
tro anos de Palmas de Ouro con-
cedidas a obras que privilegia-
ram o dissenso na sociedade e
os padecimentos decorrentes
dele. O japonês Assunto de Famí-
lia , premiado em 2018, desta-
cou a marginalização financei-
ra, moral e psíquica daqueles
que ficam à parte da riqueza; o
sueco The Square ( A Arte da Dis-
córdia ), reconhecido em 2017,
expôs o ridículo das contraditó-
rias superioridades morais evo-
cadas nos mais variados circui-
tos, como o da arte. No ano ante-
rior, o Festival de Cannes consa-
grou Eu, Daniel Blake e a perver-

são disfarçada que transforma
perdas de emprego e desassis-
tências sociais em “oportunida-
des” para o empreendedoris-
mo.
Ken Loach, diretor de Eu, Da-
niel Blake , e Bong Joon-ho, de
Parasita , persistem nesta es-
pécie de liturgia do mal-estar
com outros títulos, como os res-
pectivos Você Não Estava Aqui e
O Expresso do Amanhã.
No doméstico desassossego

que reporta o mal-estar no Bra-
sil, Carolina Jabor conseguiu
a proeza de ser delicada ao evo-
car a linguagem de farpas do
linchamento em Aos Teus
Olhos , enquanto Beto Brant
capturou em O Invasor as hos-
tilidades de um país que não
abre mão de sua divisão de
classes.
Dentre os diretores regular-
mente dedicados às perturba-
ções sociais, os norte-america-

nos Spike Lee e Ava DuVernay
pressionam a ferida do racis-
mo como um doloroso lembre-
te de que não há possibilidade
de cicatrização. O Infiltrado na
Klan e A 13ª. Emenda , respecti-
vamente, reservam consterna-
ção e revolta à experiência fíl-
mica.
No caso do dinamarquês Tho-
mas Vinterberg, a intimidade e
a cilada da moralidade são um
prato cheio para suas indiges-
tas reflexões em A Caça e Festa
de Família. O conterrâneo Gus-
tav Möller, de Culpa , mergulha
ainda mais nas estranhas do ser
humano para delas recolher o
arrependimento.
Arauto do mal-estar, o aus-
tríaco Michael Haneke pratica
uma espécie de roleta-russa ci-
nematográfica com nossos con-
flitos mais agudos: tem a cruel-
dade de Funny Games , a esperan-
ça estilhaçada de Amor , a preca-
riedade psíquica de O Sétimo
Continente. Como esquecer de
A Fita Branca e sua insuportável
enunciação do abraço dado na
intolerância pela sociedade? Li-
do na realidade atual, desperta
pavor com sua mensagem de
“eu avisei”. /A.M. V.

ROBERT HUFFSTUTTER/FLICKR

CINEMA MOSTRA


COMO PIOROU O


CONVÍVIO SOCIAL


NETFLIX

Na TV. O ator Robert Finster
é Freud em série da Netflix

O MAL-ESTAR
NA CULTURA
Autor:
Sigmund Freud
Trad.: Maria
Rita S. Moraes
Ed.: Autêntica
496 págs., R$
74,90, R$ 37,90
em e-book

Divã. Consultório do doutor Freud, cenário feito para a tela

Arte familiarizada com o


desconcerto, ela investe


em obras com leituras


sobre o mal-estar na


civilização ocidental

Free download pdf