O Estado de São Paulo (2020-06-21)

(Antfer) #1

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H10 Especial DOMINGO, 21 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


“E


xistirmos: a que será
que se destina?” Caeta-
no. Bom Caetano. Por
que será que eu sempre cantarolo
essa música do Caetano no banhei-
ro, na frente do espelho? E só essa
frase, e sempre na frente do espe-
lho? Eu nem sei o resto da música.
Cantarolo sem saber a música ou a
letra. Só tenho direito a um verso
cantarolado na frente do espelho,

o resto não é da minha jurisdição.
Não sou o responsável. Cantarolo
“Existirmos: a que será que se desti-
na?” e cumpro com minha obrigação
de todos os dias.
Mas hoje de manhã foi diferente. Eu
estava escovando os dentes ou fazen-
do a barba ou espremendo os cravos,
sei lá, quando me dei conta de que esta-
va cantarolando a música com mais
força do que de costume, num regis-

tro quase operístico. Eu estava berran-
do no banheiro. E veio a revelação! Na
noite anterior, eu lera que cientistas
ingleses tinham calculado que 36 civi-
lizações teriam condições de se comu-
nicar entre elas e conosco, na Via-Lác-
tea. O cálculo dos ingleses pressupu-
nha que, nessas hipotéticas civiliza-
ções, alguma forma de vida inteligen-
te teria se desenvolvido e crescido jun-
to com a da Terra que, por sua vez, já
teria a capacidade de se comunicar
com qualquer uma das civilizações
mais próximas.
“Claro!”, gritei. E passei a cantar
ainda mais alto. Como esperado,

meus vizinhos começaram a recla-
mar, batendo nas paredes. Me cha-
mam de louco, só porque eu toco vio-
lino no meio da noite e não sei tocar
violino. Mas agora eles verão com
quem estão tratando, nas paredes de
quem estão batendo, todos esses
anos. Finalmente, entendi qual é a
minha missão na Terra. A que será
que nos destina, existirmos? Eu sei.
Preciso me preparar para o primeiro
contato com outra civilização. Preci-
so de uma gravata.
Procurarei os cientistas ingleses e
direi que entendi o chamado deles.
Direi que minha imagem no espelho

tinha sido um mensageiro eficien-
te. Contarei que planejava recru-
tar os vizinhos do meu prédio que
me chamavam de louco para levá-
los para o primeiro contato com
outra civilização, para eles sabe-
rem com quem estão tratando.
Mas, quando eu perguntar quan-
do será o primeiro contato, os in-
gleses recomendarão gentilmen-
te que eu leia o resto da notícia. O
primeiro contato será daqui a
6.000 anos, mais ou menos. Esses
ingleses são pontuais demais.
Agradecerei e voltarei para casa,
cantarolando. “Existirmos...”

LIAM


SE RENDE


Cantor que agora lança ‘Acústico MTV’ não apareceu


na gravação do ‘Unplugged’ do Oasis, em 1996


Verissimo


Lindsay Zoladz / NYT


Até recentemente, para os fãs
do Oasis, as palavras Liam Gal-
lagher e Acústico MTV traziam à
mente um dos episódios mais
famigerados e sombriamente
hilários na história da banda.
Durante a maior parte de
1996, os reis do pop britânico
desfrutaram de um longo triun-
fo após o lançamento do seu su-
cesso de 1995 (What’s the Story)
Morning Glory
. O verão intermi-
nável do Oasis culminou em
agosto na Knebworth House,
um enorme espaço ao ar livre
onde o grupo realizou dois con-
certos para 125 mil pessoas ca-
da noite. Algumas semanas de-
pois, a banda teria um show con-
sideravelmente mais íntimo,
no Royal Festival Hall, no Sou-
th Bank de Londres, para um
episódio da série de performan-
ces acústicas da MTV.
Os ensaios foram agitados,
com o vocalista da banda, Liam,
aparecendo apenas esporadica-
mente – barbudo, usando a mes-
ma roupa por vários dias, apon-
tando para sua garganta e de-
pois saindo do set e deixando
seu irmão Noel, compositor, pa-
ra cantar suas músicas. Na noi-
te da gravação, uma hora antes
de a banda subir ao palco, Liam
oficialmente se afastou, citan-
do um problema de laringite.
Mas o show seguiu em frente.
“Liam não estará conosco esta
noite”, disse Noel para o públi-
co. “De modo que vocês vão ter
de aturar os quatro feios.”
Noel não tem o alcance de
voz do seu irmão mais novo –
ela é mais melancólica, since-
ra e de vez em quando trêmula
–, mas esteve mais do que à
altura da tarefa de liderar o Oa-
sis na noite. Foi comovente ou-
vi-lo superando suas limita-
ções como vocalista e interpre-
tando aquelas músicas exce-
lentes como as compôs, senta-
do ali, humildemente, com
sua guitarra acústica.
O show do Oasis no Acústico
MTV
continua um clássico da
série, não só por causa de Noel,
mas porque a garganta de Liam
aparentemente sarou a ponto
de ele assistir ao show da pla-
teia, onde fumava um cigarro
atrás do outro, bebia cerveja e
importunava seu irmão. A rivali-
dade shakespeariana dos Gal-
laghers, condensada num úni-
co espetáculo.
Essa rivalidade continua. Des-
de que Noel deixou o Oasis em
2009, ele e o irmão continua-
ram seu duelo em carreiras so-
los. O High Flying Birds de Noel
Gallagher seguiu um caminho
mais de vanguarda, com seu
mais recente álbum, Who Built
the Moon?
em que faz experiên-
cias com a arte psicodélica.
Primeiramente com seu gru-
po Beady Eye e, desde 2017, co-
mo artista solo, Liam vem se
juntando a outros composito-
res para fazer música que evoca
o espírito sonoro do pop britâni-
co da década de 1990. “Eu ainda
não confio em mim como com-
positor”, disse ele à revista Rol-
ling Stone
no início deste ano,
com uma surpreendente aceita-
ção de suas próprias limitações.
“De modo que passo a tarefa pa-
ra pessoas que sabem o que es-
tão fazendo. Eu poderia com-
por um álbum, mas acho que
ele nem mesmo chegaria a uma
rádio, sabe o que quero dizer?
Quero que as pessoas ouçam.”
Liam, certamente, teve um


público cativo no Hull City Hall
no ano passado, quando Gallag-
her, finalmente, gravou seu pró-
prio programa do Acústico
MTV. Seu próprio website des-
creve de modo hilário a grava-
ção: “Liam Gallagher veio se jun-
tar à lista dos grandes de todos
os tempos (Paul McCartney,
Jimmy Page e Robert Plant, Nir-
vana e muitos mais) que grava-
ram uma sessão no prestigiado
Acústico MTV , nunca perdendo
a oportunidade sutil de fazer
sombra para seu próprio irmão.
Entre cada música, a multidão
irrompe aos gritos de ‘Liam!
Liam!’, como se fosse uma parti-
da de futebol”.
Os dois álbuns solos de Liam,
As You Were , de 2017, e Why Me?
Why Not , de dois anos depois,
trazem músicas aproveitáveis
compostas amplamente por
compositores pop em deman-
da. Greg Kurstin e Andrew
Wyatt (Adele, Lady Gaga), mas
com frequência são gravadas
em estúdios revestidos que sua-
vizam a voz rouca de Gallagher.
Os arranjos para o Acústico MTV
de vez em quando estão abarro-
tados de cordas, mas prefiro
mais o material de estúdio, uma
vez que permite que os grunhi-
dos sem adornos da voz de Gal-
lagher cheguem altos e claros.
Quando o Oasis surgiu na ce-
na artística em 1994 com Defini-
tely Maybe , o rock britânico não
ouvia um tipo de som mais rele-
vante desde Johnny Rotten e a
história pregressa dos irmãos
só confirmou a tensão já eviden-
te em sua música. A tonalidade
vocal de Liam faz com que a
música soe como se fosse uma
guerra que ele trava com as pala-
vras e melodias que está entoan-
do. Mas alguma coisa na sua voz
também tem um vestígio da es-
perança obstinadamente since-
ra. “Você e eu vamos viver para
sempre”, diz em Live Forever.
As mais potentes músicas so-
los de Gallagher, contudo, lu-
tam com o fato de que ele não
corresponde. Um exemplo é
Once , composta por Wyatt,
uma balada sobre a vida ajustan-
do contas com você. “Quando a
alvorada surge, você fica tão ins-
pirado a fazer tudo de novo.”
Liam canta falando da sua ju-
ventude, seus dias despreocu-
pados. “Mas acontece que você
só pode fazer isso uma vez.”
Mas o público e a gravação fi-
cam mais animados quando
Gallagher canta alguns velhos
clássicos do Oasis. Como o
Acústico geralmente é conside-
rado um assunto sério, a lista de
músicas incorpora aquelas
mais calmas como Morning
Glory , Cast No Shadow e Sad
Song , lado B de Definitely Maybe ,
algumas das poucas músicas da
banda em que Noel é o vocalis-
ta. (Liam traz o ex-guitarrista
do Oasis Paul “Bonehead” Ar-
thurs como convidado nessas
faixas – antes de apresenta-
ções solos na noite fazendo re-
ferências ao Great Heckling de
1996 –, dedicando Once ao
músico que fez o Acústico
MTV ... duas vezes.)
O melhor de tudo são a inter-
pretação, conduzida pelo pia-
no, de Some Might Say , e o gru-
po cantando Champagne Super-
nova no encerramento. São al-
guns minutos sem os solos al-
tíssimos da banda (Noel e Paul
Weller tocam guitarra na gra-
vação).
Será que um dia Liam e Noel
estarão de novo juntos no pal-
co? A resposta pode estar em
Champagne Supernova : “How
many special people change? /
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE
ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

l]


Cantarolando


Liam
Gallagher.
Faltou à
gravação,
mas ficou na
plateia
fumando,
bebendo
cerveja e
importunando
seu irmão
DYLAN MARTINEZ/REUTERS - 22/5/2018
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