O Estado de São Paulo (2020-06-22)

(Antfer) #1
VARANDA É

CAMAROTE

NA


QUARENTENA


Teatro


Peças no palco, para um público online PÁG. H6


Danilo Casaletti
ESPECIAL PARA O ESTADO


A noite de 6 de junho foi diferen-
te no condomínio Alameda Mo-
rumbi, na zona sul de São Paulo.
Em um palco improvisado na
área das piscinas, duas bandas co-
vers, a Beatles 4Ever e Creenden-
ce 4Ever, se apresentaram para
cerca de 1.600 moradores – to-
dos dentro de seus apartamen-
tos, como manda o protocolo do
isolamento social –, e com trans-
missão pelas redes sociais. As li-
ves em prédios (na verdade,
shows) vêm conquistando a sim-
patia de condôminos que, em
tempos de coronavírus, passam
o fim de semana em casa.
“Você se envolve e acaba es-
quecendo o que está acontecen-
do no mundo. É um momento de
alívio”, diz a aposentada Neide
Gottardi, uma das moradoras do
Alameda Morumbi – ela não reve-
la a idade, mas conta que faz par-
te do grupo de risco e só sai de
casa para o essencial.
A live foi um pedido dos mora-
dores ao síndico Paulo Sérgio
Werneck, há cinco anos no car-
go. O prédio já fazia uma canto-
ria organizada pelos moradores
nos fins de semana, mas o show
foi mais grandioso. Além das ban-
das, uma queima de fogos deu o
clima de festa. “Todos gostaram.
Tivemos reclamações pontuais,
mas nada fora do normal”, conta
Werneck, que fez uma enquete
na qual 87% dos moradores se
mostraram favoráveis à iniciati-
va. “Eles já me pediram para pen-
sar em uma festa de réveillon.”
Para realizar a apresentação,
Werneck procurou por uma em-
presa. Encontrou a Live Aki, que
desde o início de maio tem atua-
do em eventos desse tipo. Forma-
da por duas empresas que já tra-
balhavam com entretenimento,


a Taurus Som e Imagem e a Oita-
va Produções, a nova produtora
firma parcerias para bancar os
eventos e não cobra nada dos
condomínios – a contrapartida é
que os moradores doem alimen-
tos para o projeto Cidade Unida,
que os encaminha para institui-
ções assistenciais e ONGs. No
show do Alameda Morumbi, por
exemplo, foi arrecada meia tone-
lada de mantimentos.
Nesse modelo, a LiveAki divi-
de o custo das apresentações em
cotas de R$ 300 que oferece a
prestadores de serviço do condo-
mínio e comércios da redonde-
za, que têm suas marcas exibidas
nas lives transmitidas nas redes
sociais. Com o dinheiro, paga as
bandas e técnicos. Nenhum va-
lor fica para a empresa. “Às ve-
zes, ponho até do meu bolso.
Não tenho interesse financeiro
no projeto”, afirma Fabio Cano-
va, da LiveAki. “Estava vendo
músicos e técnicos em dificulda-
de. Doei cesta básica, paguei con-
ta de água. Precisamos gerar ren-
da para o setor”, diz Canova, ex-
plicando um dos propósitos da
iniciativa que já deu trabalho a
100 profissionais.
No sábado 13 de junho, a Li-
veAki organizou o show no con-
domínio Port France, no bairro
da Casa Verde, na zona norte da
capital. Lá, quem se apresentou
foi a ABBA Majestät e a banda Na-
moral (com músicas do Jota
Quest). A apresentação arreca-
dou mais de 300 quilos de alimen-
tos – os prédios vizinhos tam-
bém se envolveram na ação – e
gerou trabalho para mais de 20
profissionais, entre músicos, pro-
dutores e técnicos.
Quem também organiza
shows em prédios é o educador
físico Fernando Escarelli. Ele é
dono de uma assessoria esporti-
va que presta serviços para 31

condomínios em São Paulo e ci-
dades vizinhas, como Guaru-
lhos. Entre seus clientes, 12 já to-
param fazer algum tipo de apre-
sentação – que ele oferece sem
custos, como forma de fideliza-
ção. “Virou uma febre, muitos co-
meçaram a pedir ajuda para orga-
nizar e eu resolvi oferecer como
um mimo”, diz.
Segundo Escarelli, cada apre-
sentação pode custar para ele de
R$ 700 a R$ 1.500, dependendo
da estrutura e do artista. Ter op-

ções é fundamental – ele tem em
seu cardápio música eletrônica,
sertaneja, MPB e até clássica.
“Em um prédio menor, com mo-
radores mais idosos, eu levei um
violinista que tocou uma hora.
Todo mundo ficou satisfeito.”
No condomínio Lumina, no
bairro do Belém, na zona leste da
capital, com três torres, a esco-
lha foi por uma grande balada. Es-
carelli colocou um DJ e um ani-
mador para se apresentarem em
cima da portaria do prédio. O

evento durou cinco horas e con-
tou com show de luzes, não só do
organizador, mas também dos
moradores, que improvisaram
em suas varandas.

Independentes. Para além do
formato de empresas que organi-
zam os shows em condomínios,
outras duas modalidades estão
em vigor. Uma delas é a que o
músico ou a banda se apresenta
de graça e divulga sua conta ban-
cária para os moradores deposi-
tarem uma contribuição voluntá-
ria. Músicos ouvidos pelo Esta-
dão dizem que as doações são
bem-vindas, mas ficam longe de
alcançar o valor do cachê que cos-
tumam receber quando tocam
em bares, casas noturnas ou
eventos. Na outra, o músico ne-
gocia um cachê direto com o pré-
dio – geralmente, 50% a menos
do que costumavam receber an-
tes da pandemia.
A banda Queen Tribute Brazil
(@quentributebrazil), que cele-
bra o repertório do grupo britâni-
co liderado por Freddie Mer-
cury, teve 30 shows cancelados
desde março, e encontrou nos
condomínios um jeito de conti-
nuar na ativa. O baterista Reinal-
do Kramer, que fundou o grupo
em 1991, diz que os integrantes
vivem só da música. “Com os
shows, conseguimos garantir
uma renda até que tudo se nor-
malize.” Por sua vez, o músico e
cantor Igor Godoi, vocalista da
banda Sioux 66, já fez três lives
em prédios. Em duas recebeu ca-
chê; na outra, divulgou sua conta
bancária para doações voluntá-
rias. “Estamos nos moldando
aos novos tempos. Um lado im-
portante é que divulgamos nos-
so trabalho com as hashtags e lo-
calização nas redes sociais”, diz
ele, em dúvida se o mercado vol-
tará ao normal tão cedo.

Já o músico Renan Pirras arru-
mou um jeito inusitado para se
apresentar para os moradores de
prédios. Morador do bairro de
Santana, na zona norte, ele canta
e toca violão na varanda de sua
casa, que é cercada de prédios. A
plateia gostou, aplaudiu e piscou
as luzes – o que o levou a enten-
der que estava agradando. Ao to-
do, ele já fez cinco apresenta-
ções, com um repertório que in-
clui Tim Maia e Djavan. Pirras
transite seus shows em sua con-
ta do Instagram (@renanpirras)
e pede doações para uma ONG
do bairro. “Até agora, não ganhei
dinheiro, mas as pessoas dizem
que gostam desse formato. E eu
fico feliz por não me contradizer,
pois acredito que cada um deve
ficar em sua casa”, diz.

Moderação. De acordo com Ri-
cardo Karpat, diretor da Gábor
RH, que treina e assessora síndi-
cos profissionais, os condomí-
nios precisam ser cientes de que
o direito ao sossego, garantido
no Código Civil e nas conven-
ções dos prédios, precisa ser res-
peitado. “A pandemia não abre
brecha para desrespeitar leis ou
o regulamento dos prédios. O
descumprimento pode resultar
em processos ou multa”, alerta
Karpat, que afirma que a reclama-
ção pode vir não só de morado-
res, mas de vizinhos do prédio
que se sentirem incomodados.
O conselho de Karpat é para
que os síndicos façam algum tipo
de consulta para saber se a maio-
ria concorda com o evento. Ele
sugere que as apresentações se-
jam feitas aos fins de semana, an-
tes das 19h, e tomando cuidado
com o volume do som – em zona
residenciais, o limite é 50 deci-
béis. “Dessa forma, mesmo
quem não for a favor não se senti-
rá tão incomodado.”

Em tempos de


isolamento,


condomínios


contratam as


próprias ‘lives’


FOTOS DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Embalos de sábado à noite. Banda ABBA Majestät, que canta sucessos do ABBA, em apresentação na zona norte da capital – show rendeu a arrecadação de 300 quilos de alimentos


Público. Moradores acompanham show sem sair de casa

AMANDA PEROBELLI / ESTADÃO

%HermesFileInfo:H-1:20200622:H1 SEGUNDA-FEIRA, 22 DE JUNHO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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