National Geographic - Portugal - Edição 230 (2020-05)

(Antfer) #1
34 NATIONALGEOGRAPHIC

Calcula-se que mais de metade da população
mundial contraia o SARS-CoV-2 no futuro pró-
ximo. Uma elevada percentagem das pessoas in-
fectadas quase não apresentam sintomas e cerca
de 14% são assintomáticas. Em contrapartida,
um número assustador de profissionais de saúde,
permanentemente em contacto com o vírus, tem
sido infectado, o que duplica o efeito pernicioso da
doença: por um lado, reduz o número de médicos
e enfermeiros em condições de assistir doentes e,
por outro, tem provocado mortes no seio da comu-
nidade mais preparada para combater a pandemia.
Em vários pontos do globo, equipas de virolo-
gistas procuram formas engenhosas de superar o
vírus, criando a vacina que tem sido amplamente
reivindicada de Pequim a Nova Iorque. Uma va-
cina, porém, exige tempo e experimentação, bem
como a certeza de que eventuais resultados ines-
perados não serão desencadeados por ela.
O coronavírus apresenta outra dificuldade: os
animais tradicionalmente usados em ensaios de la-
boratório não têm grande utilidade para testar vaci-
nas para este vírus, pois muitos não são susceptíveis
à doença. Num artigo recente, publicado na “Stat”,
Eric Boodman chamava a atenção para o facto de
os ratinhos de laboratório não serem susceptíveis à
doença e, portanto, não poderem servir de modelo.
No surto de síndrome respiratória aguda grave, foi
necessário facilitar a infecção nestas cobaias, “ma-
nipulando as suas células com a molécula humana
que permite a penetração de alguns coronavírus”.
Simplesmente, após o surto, os cientistas não con-
seguiam justificar a despesa de manter estes novos
ratinhos e agora “não há exemplares suficientes
para as experiências necessárias”, acrescentou.
No mesmo artigo, Mark Feinberg, director-geral
da Iniciativa Internacional para a Vacina da Sida,
considerava que o tempo normal de desenvolvi-
mento de uma vacina é de 15 a 20 anos, um inter-
valo impossível de contemplar perante uma epi-
demia galopante. “Vamos ter de ponderar outras
abordagens”, mesmo que isso implique escolhas
desconfortáveis. Uma delas é contrariar o paradig-
ma habitual e iniciar testes com voluntários huma-
nos antes de provar a segurança dos mesmos.


Existe uma verdadeira batalha informativa so-
bre a possibilidade real de se chegar a uma vacina
contra este vírus no espaço de um ano a um ano e
meio. Escassos 42 dias após a identificação da se-
quência genética deste vírus, a empresa de biotec-
nologia Moderna Therapeutics anunciou que em
breve estaria pronta para iniciar ensaios clínicos.
A notícia, naturalmente, percorreu o globo. Mas
quão perto estamos de facto de uma nova vacina?
Se analisarmos o caso mais bem sucedido da
história da saúde pública, o desenvolvimento de
uma vacina para a papeira, percebemos que pas-
saram quatro anos, entre 1963 (o ano em que se co-
lheram as primeiras amostras virais) e 1967, o ano
em que se concluíram os ensaios e a vacina ficou
pronta para inoculação a grande escala. “Doze a
dezoito meses seria absolutamente inédito na his-
tória", disse em Abril à National Geographic Peter
Hotez, da Escola Nacional de Medicina Tropical
da Universidade de Baylor. “Talvez com nova tec-
nologia e com um enorme investimento aplicado,
isso possa suceder, mas temos de ter muito cuida-
do com essas estimativas de tempo."
Além da demanda pela vacina, os cientistas tes-
tam fármacos antivirais já utilizados para tratar
outras doenças, como o remdesivir utilizado contra
a MERS, e outros fármacos usados para combater
parasitas. Para travar a resposta inflamatória exces-
siva, testam-se inibidores específicos das citocinas.
Outras abordagens terapêuticas em curso incluem
o uso de soro sanguíneo de pacientes que já supera-
ram a infecção, cujos anticorpos poderão ajudar os
doentes. Com toda a probabilidade, a primeira arma
de combate ao surto virá destas ou de outras solu-
ções terapêuticas após comprovada a sua eficácia.

ATÉ À APROVAÇÃO DE UMA VACINA EFICAZ, a prin-
cipal estratégia da sociedade contra um vírus desco-
nhecido passa por medidas de contenção, pela
experimentação controlada de fármacos e pelos
esforços titânicos dos especialistas que expressam
com eloquência a melhor faceta do ser humano: a
capacidade de cooperação e entreajuda. Esperemos
que, enquanto sobrevivemos em regime de confina-
mento, possamos discernir o mundo que queremos
quando superarmos este transe. Que gestão dos ecos-
sistemas faremos para que o próximo vírus surja o
mais tarde possível? Como fortaleceremos os siste-
mas de saúde e de ciência e a capacidade de resposta
a outras pandemias e de que forma abordaremos as
crescentes desigualdades sociais e os efeitos da glo-
balização? O regresso à normalidade não é uma
opção. Essa normalidade é o cerne do problema. j

O MAIS DIFÍCIL NÃO É DESENVOLVER


A VACINA, MAS GARANTIR A


SUA SEGURANÇA E EFICÁCIA.

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