Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11


não pode permanecer ociosa”, teria
declarado Serafim; “aquele que real-
mente crê tem sempre algo a fazer.”
Essa máxima servia como uma luva
para os cientistas de Sarov, que pas-
savam suas raras horas de lazer con-
versando sobre massa crítica e con-
centrador de nêutrons.


SUMIDADES DA PESQUISA DE BASE
Em 12 de março de 1947, para dar um
impulso adicional às equipes de pes-
quisadores que, exaustos, matavam-
-se de trabalhar, o presidente dos Es-
tados Unidos, Harry Truman, definiu
sua famosa doutrina, inaugurando a
Guerra Fria. Em Washington, seu Es-
tado-Maior preparava o Plano Drop-
shot, formalizado no início de 1950,
que planejava um ataque-surpresa,
“com o lançamento de duzentas a
trezentas bombas atômicas nos prin-
cipais centros industriais, militares e
científicos da União Soviética”.
O resultado do trabalho coorde-
nado dos cientistas mais eminentes
do país, engenheiros e construtores,
bem como dos serviços de inteligên-
cia e dos “espiões atômicos” foi a cria-
ção, em apenas quatro anos, da pri-
meira bomba atômica soviética, cujo
codinome era RDS 1. Algumas déca-
das depois, um dos líderes do progra-
ma, Yuli Khariton, escreveu sobre o
período: “Estou perplexo e respeito-
samente me curvo diante daquilo
que nosso povo foi capaz de alcançar
entre 1946 e 1949. [...] [Esse] período
foi de tal intensidade, de tal heroís-
mo, de tal criatividade e abnegação
que é impossível descrever. Quatro
anos após o fim de uma luta mortal
contra o fascismo, meu país conse-
guiu pôr fim ao monopólio dos Esta-
dos Unidos sobre a bomba atômica”.^3
Dando prosseguimento à faça-
nha, em mais quatro anos as equipes
de Sarov foram além dos Estados
Unidos, desenvolvendo a primeira
bomba H. Isso, cabe enfatizar, en-
quanto o país, devastado e exaurido
pela guerra, realizava paralelamente
sua reconstrução, ao passo que os Es-
tados Unidos, ao contrário, haviam
enriquecido, dispondo de meios fi-
nanceiros colossais e de um aparato
militar-industrial inigualável. Em
1950, a economia norte-americana
representava 27% do PIB mundial,
contra 9,6% da União Soviética.
Esse modelo de cidade fechada
construída em torno de uma “empre-
sa-cidade” (gradoobrazuyushchee
predpriyatie) se repetiu em inúmeros
elos da indústria nuclear soviética.
Enquanto Sarov era o centro do pro-
jeto atômico, onde se acotovelavam
as sumidades da pesquisa de base,
dezenas de outros locais análogos
deram sua contribuição para o esfor-
ço nacional. Assim, já em 1945, diver-
sas pequenas cidades dos Urais e da


Sibéria foram escolhidas para forne-
cer matéria-prima para os experi-
mentos. Em 1946, um protótipo de
reator projetado pelo instituto técni-
co-científico de Mayak produzia plu-
tônio de qualidade militar na cidade
fechada de Ozersk, perto de Chelya-
binsk (codinome Chelyabinsk-65). E,
em 1949, outra cidade fechada, cha-
mada Tomsk-7, lançou-se à produção,
também no mais alto sigilo, de urâ-
nio 235. Aqui, a pesquisa foi menos
vanguardista e mais orientada à reso-
lução de tarefas práticas ditadas por
Arzamas-16 (Sarov). Prisioneiros po-
líticos ou comuns do gulag foram
mobilizados para os trabalhos mais
perigosos, como a extração de miné-
rio de urânio e o manuseio de mate-
rial físsil, seguindo o princípio cini-
camente expresso por Stalin: “Até os
inimigos do povo têm um papel a de-
sempenhar na construção do socia-
lismo”. Em 1945, relata o historiador
Yuri Fyodorov, treze campos de tra-
balho administrados pelo NK VD
(Ministério do Interior) com 103 mil
prisioneiros foram colocados à dis-
posição do projeto atômico. Depois,
uniram-se a eles outros 190 mil pri-
sioneiros designados à extração de
diversos minérios.^4 Quantos conse-
guiram um dia voltar para casa?
Com a pesquisa teórica em bom
andamento e o fornecimento de ma-
térias-primas garantido, era preciso
providenciar uma área de testes em
uma zona desértica, com condições
geológicas adequadas. A estepe caza-
que, perto da cidade de Semipala-
tinsk, foi escolhida. Novamente, ins-
talações colossais: em torno de todo
o epicentro planejado, prédios, bun-
kers e estações de metrô foram esca-
lonados para a avaliação do poder
destrutivo do dispositivo. Os traba-
lhadores da área, além de biólogos,
físicos e outros especialistas mobili-
zados para estudar os efeitos destru-
tivos da onda de choque e da radia-
ção, foram instalados a 100
quilômetros do ponto de teste, dando
origem a mais uma cidade sujeita ao
mesmo regime de sigilo absoluto:
Moscou-400.

SALVAR A PÁTRIA
Não é necessário ter autorização para
visitar essa vila, cuja população mal
passa de mil pessoas. Chamada de
Kurchatov, em homenagem ao diretor
científico do programa nuclear sovié-
tico, o local perdeu o brilho de outro-
ra, mas ele ainda existe aqui e ali, nas
ruas feitas de lajes de concreto borde-
jadas por árvores, nos edifícios obso-
letos de estilo stalinista e nos poucos
hotéis de estilo antigo. A cidade ainda
abriga o Instituto de Física Nuclear,
que faz testes e modelagem, em coo-
peração com uma equipe de cientis-
tas japoneses, relacionados a situa-

ções de crise, em um reator de
pesquisa localizado no antigo polígo-
no de testes. Outro sobrevivente da
era soviética, o Instituto de Seguran-
ça Radiológica ainda está fechado ao
público, mas é possível visitar o pe-
queno Museu do Polígono, onde ma-
pas do Estado-Maior e fotos em preto
e branco ajudam a contar a epopeia
da bomba soviética. Aparelhos de
medição sísmica, contadores Geiger,
câmeras da época e até o posto de co-
mando de onde partiria a ordem de
fogo – tudo está lá, alinhado, empoei-
rado, solene. Desgastado. No andar
de cima, o guia convida a meditar no
“escritório de Kurchatov”, ou pelo
menos aquele onde o diretor traba-
lhou durante suas breves estadias no
local, por ocasião dos testes. Uma in-
cubadora chamada Parque Tecnoló-
gico Nuclear tenta ressuscitar a voca-
ção científica da cidade...
A rede de cidades fechadas do pro-
jeto atômico constituía uma vasta co-
munidade de cientistas, pesquisado-
res e engenheiros, inteiramente
voltada a um único objetivo: salvar a
pátria dos novos perigos que a amea-
çavam. “Por mais paradoxal que pos-
sa parecer, essa cidade fechada às ou-
tras ligava-se por milhares de
filamentos a centenas de organiza-
ções e empresas dentro da superpo-
tência, muito mais fortemente do que
muitos dos gigantes da indústria na-
cional localizados em grandes cida-
des”, escreve o historiador Vladimir
Matyushkin, em sua história de Sa-
rov. “E, sem dúvida, entre seus habi-
tantes havia quem sentisse muito
mais fortemente do que seus conci-
dadãos soviéticos o pulso do resto do
mundo, do planeta. Seu lugar na his-
tória, sua conexão com os eventos do
mundo, cada habitante da cidade
sentiu, talvez de maneira inconscien-
te, e se orgulhou disso.”^5
No entanto, essa época heroica
não podia durar para sempre, e a mo-
bilização total das forças acabou le-
vando ao esgotamento do sistema. De
veterano imperturbável a secretário-
-geral mimado, a direção soviética
acabou dobrando-se a um rígido con-
formismo, enquanto o aparato indus-
trial ficou estagnado e se deteriorou.
Cansada de ser constantemente em-
purrada à exploração por seus diri-
gentes, a população começou a re-
cuar diante do obstáculo. Até que foi
ela quem se recusou a apoiar por mais
tempo um regime incapaz de lhe for-
necer, em vez do ideal fantasma da
igualdade e da fraternidade, os bens
de consumo com os quais sonhava e
dos quais fora incessantemente pri-
vada em nome de emergências e cri-
ses. O povo afundava na desilusão e
até no alcoolismo. Gorbachev, que
diagnosticou corretamente o proble-
ma, não foi capaz de contê-lo.

A década de 1990 foi perdida ten-
tando-se criar uma economia de mer-
cado sobre os escombros dos planos
quinquenais, ao mesmo tempo que se
desenrolava uma arriscada tentativa
democrática. Economistas russos e
estrangeiros avaliavam os méritos
desse ou daquele tipo de transição,
enquanto os oligarcas, mais prosai-
cos, compravam a preço de banana
empresas e complexos de petróleo, si-
derurgias, fundições de alumínio,
minas, usinas químicas. As falências
se multiplicaram, o desemprego ex-
plodiu e as empresas que resistiam à
tormenta pagavam salários em ru-
blos fortemente desvalorizados. O
salve-se quem puder estendeu-se a
todos os setores da sociedade, que,
um após o outro, pararam de ser fi-
nanciados, da saúde à educação, pas-
sando pela polícia e pela justiça.
O ódio crescia, o separatismo vi-
cejava. A Guerra da Chechênia des-
pertou, na população chocada e hu-
milhada, não entusiasmo, mas uma
sede doentia de vingança. Quando
todos esperavam uma rápida chama-
da ao dever da república indócil –
“Tarefa de duas horas para uma divi-
são paraquedista”, prometeu Pavel
Grachev, ministro da Defesa –, o
Exército se viu preso em um atoleiro
de sangue.
Questionados sobre o assustador
balanço demográfico dos expurgos,
repressões e outros campos de inter-
nação do período soviético, os comu-
nistas russos, transformados em uma
opção eleitoral entre outras, destaca-
ram as cicatrizes, tão absurdas a seus
olhos, que o liberalismo de choque
deixou na pirâmide etária ao longo
dos quinze anos após a queda do re-
gime soviético: entre 1992 e 2008, as
mortes superaram os nascimentos
em 11 milhões.^6 Estava em questão a
degradação do serviço de saúde, a ex-
plosão da criminalidade, o aumento
de suicídios, acidentes e catástrofes
de todos os tipos, além da Guerra da
Chechênia. De 1990 a 1994, a expec-
tativa de vida dos russos caiu drasti-
camente, passando de 65 para 58
anos, no caso dos homens, e de 74 pa-
ra 71 anos, no caso das mulheres, vol-
tando em seguida a aumentar
vagarosamente.
Nesse contexto, as cidades fecha-
das pareceram as últimas joias do
império. Espaços relativamente into-
cados, onde estamos na companhia
de gente de bem, a salvo, se não da
corrupção, pelo menos de suas for-
mas mais perversas, da máfia, do cri-
me. Acima de tudo, o aparato científi-
co soviético, em toda parte vendido e
dilapidado, aqui permanece protegi-
do da ganância dos novos converti-
dos ao liberalismo. As pessoas conti-
nuam a se ocupar de tarefas
essenciais, como a produção de ma-
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