Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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8 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


As principais autoridades políticas e sanitárias, às quais caberia a obrigação de formular políticas de controle, carrear
recursos, viabilizar meios, gerenciar processos e coordenar ações, incorreram em sérios equívocos e omissões, numa
sucessão de erros que resulta em sofrimentos, sequelas e mortes totalmente desnecessárias

POR NAOMAR DE ALMEIDA FILHO, GULNAR AZEVEDO E CLAUDIA TRAVASSOS*

SAÚDE


E


ntramos no temido mês de agos-
to com mais de 2 milhões de ca-
sos e perto de 100 mil mortos
confirmados por Covid-19 em
todas as regiões do Brasil. Em função
da grande diversidade geográfica, so-
cial e cultural do país, o panorama da
pandemia mostra-se bastante com-
plexo. Aqui, ela tornou-se um sistema
de epidemias, afetando distintos seg-
mentos da sociedade e setores do
imenso território nacional.
Os primeiros casos confirmados
eram pessoas de alta renda, recém-
-chegadas de viagens ao exterior; ra-
pidamente, porém, a doença atingiu
as periferias das grandes cidades e o
interior do país, com maior letalidade
na população pobre e negra, entre de-
sempregados, afetando tragicamente
povos indígenas, quilombolas e po-
pulações ribeirinhas. Recentemente,
em algumas capitais, a pandemia ten-
de a se estabilizar em altos patamares
de incidência e mortalidade, mas es-
sas taxas crescem em cidades de me-
nor porte em todo o país. No momen-
to, ocupamos o segundo lugar do
mundo em número de casos e de mor-
tes; com 3% da população mundial,
temos 14% dos óbitos por Covid-19.
A ausência de uma política nacio-
nal para enfrentamento da terrível
crise sanitária agrava esse cenário
desolador. As principais autoridades
políticas e sanitárias, às quais caberia
a obrigação de formular políticas de
controle, carrear recursos, viabilizar
meios, gerenciar processos e coorde-
nar ações, incorreram em sérios equí-
vocos e omissões, numa sucessão de
erros que resulta em sofrimentos, se-
quelas e mortes totalmente desneces-
sárias. O pior é que, por ignorância,
negacionismo e crueldade, lideran-
ças políticas vêm deliberadamente
promovendo boicotes e obstáculos às
medidas de combate à pandemia.
É responsabilidade intransferível
da Presidência da República coorde-
nar ações e políticas emergenciais
para controlar crises humanitárias
nacionais e reduzir seus impactos
evitáveis. Diante da pandemia de Co-
vid-19, caberia ao governo federal
apresentar à sociedade um plano de

ação nacional, composto por medi-
das factíveis e embasadas em conhe-
cimento científico, articulado e coor-
denado pelas autoridades sanitárias,
em todos os níveis e setores, com a
participação ativa das instâncias de
controle social do SUS.
No auge da pandemia, torna-se
imperativo e urgente organizar co-
nhecimentos, recursos, competên-
cias e energias num conjunto amplo
de estratégias, orientações, normas,
procedimentos, programas e políti-
cas, articulado de modo eficiente e
coordenado centralmente, contando
com a gestão integrada em todas as
esferas de governo e com a participa-

ção da sociedade organizada. Mas in-
felizmente nada disso foi feito até o
momento. O resultado dessa irres-
ponsabilidade trágica é o fato de o
Brasil entrar no quinto mês da pan-
demia sem nenhum plano oficial de
enfrentamento em escala nacional.

PLANO DE ENFRENTAMENTO
DA COVID-
Preocupados com essa lamentável e
grave omissão, entidades e movi-
mentos sociais que atuam na área da
saúde e participam da Frente pela Vi-
da (https://frentepelavida.org.br)
apresentaram recentemente à socie-
dade um Plano Nacional de Enfrenta-

mento da Covid-19. Para a elaboração
desse plano, mais de cinquenta pes-
quisadores de treze entidades cientí-
ficas e 21 grupos de trabalho do cam-
po da saúde coletiva conduziram
uma detalhada e sistemática análise
das interfaces relevantes da pande-
mia e elaboraram setenta recomen-
dações estratégicas e técnicas, dirigi-
das às autoridades políticas e
sanitárias, aos gestores do SUS e à so-
ciedade em geral. De imediato, o
Conselho Nacional de Saúde acolheu
a proposta e muito contribuiu para
sua versão final, que foi apresentada
às comissões do Congresso Nacional,
ao Ministério da Saúde e a outras ins-
tâncias do SUS. O que se segue é um
extrato desse esforço coletivo, na ex-
pectativa de ampliar sua difusão e
acolhimento entre os setores interes-
sados da sociedade.
Em todo o mundo, diante do qua-
dro de recessão causado pela pande-
mia, medidas proativas de promoção
e geração de emprego e de proteção
social aos trabalhadores têm sido co-
locadas em prática, como embrião de
uma renda universal básica. A pan-
demia atingiu o Brasil num momento
de reformas antipopulares, centra-
das na austeridade fiscal e na redu-
ção do papel do Estado na economia.
Aqui, o suposto conf lito entre econo-
mia e combate à Covid-19 tem sido o
argumento com o qual setores políti-
cos insistem numa agenda neoliberal
socialmente perversa. Como resulta-
do, programas de proteção social
aprovados pelo Congresso Nacional,
incluindo o auxílio emergencial para
pessoas e famílias necessitadas, en-
contram dificuldades de viabilização
pelos setores econômicos do governo
federal e se mostram insuficientes
para sustentar as medidas de contro-
le da pandemia.
As políticas de austeridade fiscal
que agora fragilizam a estrutura de
proteção social também desfinancia-
ram o SUS. Essa situação foi recente-
mente agravada pela inoperância do
Ministério da Saúde no repasse de re-
cursos destinados ao enfrentamento
da pandemia. Ampliação de recursos
financeiros é fundamental para ajus-

Como controlar a pandemia no Brasil


© Giorgia Massetani
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